quarta-feira, 31 de março de 2010
lábios
em cima da mesa ficou a cesta das frutas. nenhuma data, nenhum gesto que assinale uma alteração. conto uma vez mais as maçãs, as bananas, os restos do ananás. algures pelos teus lábios encontrarei o sabor de todas as peças deste quadro. tu sorris, simples e complexa, como se uma janela fosse pouco para encontrar o reino dos sentidos. em cima da mesa ficou a sugestão, o sorriso. nenhuma data, nenhuma obrigação. algures por aí residirá o prazer. e fiquei eu de o encontrar.
reverso
a noite inteira é uma estrada de regresso a casa. os sinais luminosos, a voz na rádio, os carros parados na berma. pela auto-estrada, obras no asfalto, camiões. nada é definitivo. nenhum dos meus versos, muito menos este texto. sobre ele virão máquinas, subtraindo formas e palavras. obras no asfalto. condução perigosa.
terça-feira, 30 de março de 2010
cisnes
ter memória é, ainda, lembrar todos os maus poemas que foram escritos nas férias de páscoa de tantos anos seguidos. poemas, todos eles, inúteis e esquecidos numa mochila que guardo atrás do sofá da sala. olhá-los é tropeçar e ferir os joelhos, de tão maus, de tão velhos. mas é também perceber que a cicatrização se faz assim, tentando, errando, tentando outra vez. com o passar do tempo, a crosta cai e, a esperança do poeta, é que as suas palavras, outrora patinhos feios, se tenham transformado em cisnes. cisnes sem memória, de preferência.
areia
relembrar também é voltar a estar na praia, nas férias da páscoa, a conversar sobre vidas ainda muito curtas, sobre dúvidas ainda quase nada de existências, a jogar à bola, a dar mergulhos na água gelada, voltar para a casa e deixar um rasto de areia nas escadas, a fazer inveja aos vizinhos. mais logo, se eu pisar areia nas escadas no meu prédio, nem sei o que faço ao miúdo que vive no quarto direito.
memória
não percorras as memórias, ou ainda acabas por tropeçar. mas a verdade é que está de chuva e apetecia mesmo estar de férias, ver o tom sawyer na televisão em doses industriais e comer bombocas, esse doce tão completamente bom que é capaz de te fazer tropeçar agora, que já és velho e tens que ter cuidado com os paraísos de chocolate com recheio de morango.
segunda-feira, 29 de março de 2010
arte poética com poetas
lês um poeta, escreves como esse poeta. lês dois poetas, escreves como esses poetas. lês três poetas, escreves como o último que leste. lês quatro poetas, escreves como os últimos que leste. lês cinco, seis, sete, oito poetas, pensas em desistir de escrever. lês nove, dez, onze, doze, treze, catorze poetas, ficas muito tempo quieto a pensar no que eles escrevem. lês quinze, dezasseis, dezassete, dezoito, dezanove, vinte poetas, percebes que os quatro primeiros que leste não eram assim tão bons. continuas a ler poetas, dezenas, centenas. vários e vários livros de cada um. e ao fim de anos e anos, a tua voz deixa de ser tocada pelo que lês, apenas assimila pormenores, utilizações, frases que chegaram com muito mais acerto à voz de um outro que não tu. se nunca parares, talvez vás acertando. não um verso por ano. a construção da tua voz.
afiar a faca
o mais recente do unânime novíssimo seria bom, se tivesse sido melhor pensado. um aglomerado de textos não será nunca um livro de poesia. afiar a faca, é preciso.
cesto triplo
de um lado os que entusiasmam, do outro os que ganham, tal é a ironia do desporto de competição. somos sempre tentados pelo espectáculo do movimento, pela generosidade da entrega que uma equipa coloca na disputa do jogo. mas, quando alguém se mete a ser eficiente, não há como ignorar. ontem à noite, jon scheyer e nolan smith levaram a universidade de duke a mais um final four dos campeonatos ncaa em basquetebol. e eu não posso ignorar que isto tem tudo a ver com aquilo que eu quero para a minha poesia.
domingo, 28 de março de 2010
sophias sem clássicos
tenho as janelas abertas, leio os poetas do realismo. para aqueles que tentaram secar o lirismo dos seus versos, o poema é um lençol estendido na janela, um recado preso à porta do frigorífico, um quarto em lisboa onde ninguém dormia sem ser de manhã. tenho as janelas abertas, leio os poetas do realismo. já não me dói a cabeça, mas esperar que algo tão limpo me faça saltar da cadeira é esperar demasiado. são sophias sem clássicos, manhãs sem magia. tenho as janelas abertas.
postal
no parque de campismo um homem, com ferramentas em ambas as mãos, reconstrói um pequeno muro já há muito caído. do lado de lá da estrada, um escoteiro sobe para cima de uma carrinha de caixa aberta e dá ordens ao condutor. uns metros à frente, alguém treina tiros aos pratos e tu estranhas, ainda é tão cedo, não haverá gente incomodada com isto? no parque de campismo, entretanto, um homem continua a explicar à sua mulher (ou será a mulher de outro?) a nova configuração do muro, a base para a montagem da tenda. a mulher olha-o, silenciosa. ouvem-se tiros e carrinhas a arrancar.
manhã
já é de manhã e o corpo ainda dorme com a cerveja e os comprimidos para a alergia da noite passada. alguém corre atrás de uma bola na tua rua, um carro passa, os cães estão alegres porque está sol. já é de manhã e o corpo ainda não quer, só uma voz muito leve dentro da tua cabeça te incita a levantar. o mundo já começou e a tua manhã é ainda apenas o quarto fechado, os estores descidos, os olhos a tentar descobrir as formas das coisas que tão intimamente conheces. já é de manhã. acordaste agora.
sexta-feira, 26 de março de 2010
egocentrismo
alguns tão espertos quanto, poucos mais. alguns tão capazes quanto, poucos mais. alguns tão certeiros quanto, poucos mais. l'état c'est moi. mais nada.
mal disposto
acordar mal disposto, com dor de cabeça. todo o corpo a obedecer à dor, não às ideias. o corpo trôpego, inseguro, a precisar de pensar os passos de uma forma que não parece natural. acordar mal disposto, com dor de cabeça. e só a pequena maldade parece ganhar caminho entre os feixes eléctricos do pensamento, a pequena perversão, a deliciosa malícia. és mau. és mesmo mau. nota-se bem, porque acordaste mal disposto.
estar de sorriso
lá no café, sempre na mesa do fundo, ele estava de sorriso nos lábios. levei um certo tempo a compreender a distância entre uma pessoa que sorri e outra que tem um sorriso nos lábios. há uma separação de elementos, como se por detrás do sorriso se escondesse algo de muito perverso e terrível. lá no café, sempre na mesa do fundo. a deixar inquieta toda a gente que percebia.
quinta-feira, 25 de março de 2010
pergunta
no entanto, a dúvida mantém-se: será melhor não perceber nada das pessoas e ter a esperança de que é possível ainda gostar delas ou, por outro lado, perceber todos os seus jogos e artimanhas e não haver qualquer lugar para esperança, crédito ou inocência?
falsos
depois, chegam com os olhos chorosos, a falar muito devagar, como se estivessem arrependidos de qualquer coisa que não sabem se fizeram. sentam-se nas cadeiras muito direitos, bebem chá, olham as unhas. repetem o discurso que ensaiaram mentalmente, esperam uma boa recepção, uma palavra compreensiva. pensam que nos enganam e nós entramos no jogo, damos-lhe aquilo que nos pedem, eles seguem sossegados, contentes de não estarem sós no mundo. vão precisar de fazer o mesmo com toda a gente. nunca o vão conseguir. nunca vão ser felizes.
gente
esquecer que a vida é uma linha contínua é coisa que se vira sempre contra nós. esperar que a vida dos outros tenha apenas começado no dia em que entrámos nela, é ignorar, quase sempre, os anos decisivos para que seja possível perceber que essa pessoa é como é. no entanto, há quem passe os dias assim mesmo. como se não houvesse continuidade entre as acções, como se não houvesse uma história. e comete erros atrás de erros sempre na esperança de que tenha sido a sua primeira vez, que os outros não reparem, que os outros já tenham esquecido. para falar a verdade, não suporto essa gente.
quarta-feira, 24 de março de 2010
adormecer
e eu sei muitas mais coisas mas escondo-as, estão guardadas para um outro dia em que comece a chover a noite inteira, nós não possamos sair de casa, e eu tenha que contar uma longa história com final feliz para te sentir adormecer, quente e sorridente, nos meus braços. não há mesmo nada a temer.
méxico 68
também me lembro de outras coisas, de por exemplo estar no recreio com a sandra e ela me dizer que ia ser minha namorada, assim, decidido por ela, sem questão nem nada, de toda a lista de obrigações e deveres que eu passaria a ter, de eu ter ficado confundido e (até) insatisfeito por as cosias serem assim, de só muitos anos depois ter percebido que nem todas as miúdas eram assim.
méxico 86
do méxico 86 lembro-me de um argentina bulgária sensaborão na sala da casa da minha avó, do renato a chegar e sairmos os dois para jogarmos à bola no quintal, de tentarmos fazer em cinco metros de relva o que se via na televisão, de ficarmos com as pernas cheias de pequenos golpes, de eu achar aquilo tudo muito estranho e incompreensível, de só anos mais tarde ter percebido que nem todos os relvados são iguais.
terça-feira, 23 de março de 2010
pendura
enquanto tu conduzes o carro, vês a realidade. o poeta vai ao lado. no lugar do pendura (ou do morto, consoante as simpatias). ao lado, tudo parece mais perigoso, aventureiro, radical. é toda uma outra linguagem que não controlas, que inventas, que te faz sentir inseguro. se conduzes o carro, vês as coisas como elas são. se és poeta, vês as coisas como elas poderiam ser.
animais
acho que até o sol começou a brilhar quando começaram a sair andorinhas dos teus olhos. ouvia-se o mar cada vez mais perto e algumas gaivotas que aterravam junto aos meus pés. acho que até o sol começou a brilhar, um gato cheirava a maré salgada, um cão passeava, amigo de toda a gente. eram muitos animais, quase nenhuma pessoa. acho até que o sol começou a brilhar.
segunda-feira, 22 de março de 2010
carneirinhos
quando o vento beija a largura do mar, criam-se carneirinhos. aprendeste hoje esta palavra que nos enche a boca e apreende os lábios para a doçura. carneirinhos, repito, visivelmente satisfeito por ter para ti esta oferta. lá longe, no mar, o azul inunda-se de pequenas ondas que forma um rebanho que foge ou brinca. aqui, sentados na areia, repetimos juntos a palavra que inauguramos hoje. redonda e branca.
claridade
o ar ferve em nossa volta, nesta rua onde o vento marítimo não tem entrada. o ar ferve, a testa sua: fazemos o nosso passeio, recuperando conversas e ideias, os acontecimentos todos da semana. o ar ferve em nossa volta, sempre, até que voltamos outra esquina e somos tomados pela brisa que nos faz levantar voo. e nós seguimos esvoaçantes e encantados.
domingo, 21 de março de 2010
diário de vila do conde 74
a última entrada deste diário é uma viagem de comboio.
diário de vila do conde 73
o que começou aqui não vai acabar tão depressa. ficaram convites, promessas, gratidão. o que começou aqui não vai acabar nunca. todos temos uma pequena marca em nós feita por estes dias. o que começou aqui vai continuar. e continuar a continuar por aí adiante.
nocturno de vila do conde 72
mais uma noitada no apartamento a falar de poesia. desta vez acompanhada com as últimas cervejas que vieram do pátio. todos levamos alguma coisa que aprendemos. todos temos recados, mesmo que seja para nós próprios. todos vamos dormir muito bem, mesmo que pouco.
nocturno de vila do conde 71
isto que cai do céu é chuva, arvis. na praia está frio, sonata. ceci n'est pas europa de leste.
nocturno de vila do conde 70
o pátio está cheio, cheio, mas a isabel arranja maneira de termos uma mesa. a bebida corre entre os nossos dedos, o fumo dos cigarros, as conversas descontraídas. sem este lugar não existiria valter hugo mãe, diz-nos ele, e todos acreditamos. o joão rios com os seus planos de revolucionar o mundo com a poesia, as fotografias, os abraços de despida. o pátio está cheio. nós também.
diário de vila do conde 68
no final da sessão, término oficial do workshop, um sentido agradecimento ao Paulo Pinto, à Marta Miranda e à Elisa Ferraz, que o tornaram possível .
diário de vila do conde 67
subimos ao palco. a sonata despiu a timidez. o arvis dobrou-se sobre o microfone e entoou letão como se cantasse. o ivan esqueceu-se de um dos poemas que devia ter lido. o melícias, à cowboy, disparou-nos poemas do seu livro. o nuno tremia que nem varas verdes. tudo correu bem. tudo correu mesmo muito bem.
diário de vila do conde 66
a biblioteca josé régio está aberta todas as sextas-feiras à noite. as pessoas entram e saem com livros debaixo do braço. há quem aproveite para ler o jornal, para pesquisar na net com os filhos, talvez algum trabalho se prepare. como também é normal que exista algum evento, as pessoas que se sentam no auditório são uma espécie de clientes habituais, para além dos amigos com quem convivemos durante a semana. estamos em casa. é o que sentimos.
diário de vila do conde 65
no último jantar de vila do conde, a sonata estava nervosíssima com a leitura. o petr, como sempre, comia com satisfação. o ambiente geral era, apesar do nervosismo da apresentação pública, algum relaxamento. uma semana a trabalhar à beira de acabar em festa, o melhor que se pode ter. demos um grande abraço à dona ercília e seguimos à chuva. certos de que tudo iria correr bem.
sexta-feira, 19 de março de 2010
diário de vila do conde 64
e assim, esta noite, teremos poemas lidos em português, checo, eslovaco, letão e lituano. vai ser um espectáculo de variedades linguísticas.
diário de vila do conde 63
e agora, o leilão de poemas, para se decidir quem lê o quê esta noite.
diário de vila do conde 62
uma lição: cuidado com os nervos, não vás perder os sapatos.
diário de vila do conde 57
não será portanto de espantar que ontem me tenham chamado velho dos marretas. mas um daqueles velhos que diz muitas asneiras e canta música brega. ao fim de uma semana de convivência, é impossível que esta gente não me conheça bem. e passa-se a chamar a isto amizade.
diário de vila do conde 56
é uma coisa que talvez a maior parte das pessoas não espere, mas os poetas adoram dizer asneiras, asneiras das grossas, para afastar fantasmas.
diário de vila do conde 55
numa das entradas deste diário está a dar-me os nervos, caralho.
diário de vila do conde 54
um amigo meu tinha a mania de nos responder com a frase "isso é porque eu sou preto" sempre que dizíamos que ele tinha feito algo mal. vivia com essa sensação de que o mundo era injusto para ele, por causa do leve tom acastanhado da sua pele. isto para dizer que a compreensão das diferenças culturais é uma treta. quando uma pessoa é simpática é interessante, não importa que seja russa, checa, lituana, chinesa, inglesa, o que for. agora quando a pessoa se está a cagar, não há mesmo nada que se possa fazer.
diário de vila do conde 53
preparativos para a sessão de leitura de logo à noite. intenso brainstorming e avaliação de capacidades. haverá break dance, equilibrismo, cantigas, ventríloquos. todos terão que aparecer na biblioteca josé régio, logo à noite. o auditório da biblioteca será pequeno para a grandeza do que se vai ver.
diário de vila do conde 52
os meninos dos anos oitenta gostam de toda a gente. os meninos dos anos setenta não gostam de ninguém.
diário de vila do conde 51
numa das entradas deste diário fala-se muito de beja.
diário de vila do conde 50
conversas sobre programas de televisão. vem à liça o programa da rita ferro rodrigues. eu relembro que lhe devo a menção do meu nome na sua crónica do expresso. de alguma maneira, a rita ferro rodrigues é o meu antónio guerreiro.
diário de vila do conde 49
enquanto se escreve o diário, as personagens discutem as suas entradas. ou seja, nuno brito, jorge melícias e maria sousa estão dos dois lados da barricada. é inevitável que, assim, se vá fazendo uma teorização da escrita do diário. isto é literatura.
diário de vila do conde 48
na rádio linear, de vila do conde, todas as tardes há um programa chamado diário de vila do conde. entendamos esse como o verdadeiro diário desta cidade. eu só aqui estou de passagem.
diário de vila do conde 47
os poetas, no bar da moda, a ler revistas cor-de-rosa.
diário de vila do conde 46
um dos poemas de petr borkovec fala de bares que se vão inclinando. não queria acreditar quando nos abeiramos da praia e vemos o aloha bar, com as suas paredes inclinadas, como se a beijar a areia. algures em vila do conde, a poesia está agora a tocar a realidade.
diário de vila do conde 45
pelas seis da tarde, chove torrencialmente. arvis viguls chega ao pátio completamente encharcado. welcome to riga, digo-lhe eu.
diário de vila do conde 44
o café o pátio foi ontem uma freguesia de marselha, como alguém disse, não sem razão. as provocações e as gargalhadas foram aumentando com o passar dos minutos de jogo, ora com a alegria do lado dos azuis e brancos, ora com os gritos de golo dos dois (três?) adeptos encarnados ali presentes. aos noventa minutos, um poeta saltou e gritou e, a minha sensação, é que não mais se calou durante a noite toda. o benfica ganhou.
quinta-feira, 18 de março de 2010
diário de vila do conde 43
repousa as tuas mãos no trabalho terminado, podes agora descansar. os dias passaram rápidos e as retinas tremem. todos os barulhos à tua volta parecem sugerir algo que não está lá. como se tudo se misturasse sem cessar. repousa as tuas mãos, veste o casaco. podes sair.
diário de vila do conde 42
também por aqui é possível ver, pela primeira vez ao vivo, alguém que só conhecemos da televisão.
diário de vila do conde 41
no momento seguinte à clarividência, toma-nos o cansaço. passeamos confiantes dentro da poesia de um outro e o corpo amolece, decai. apetece-nos sentar lá fora, sentir o vento crescer na nossa barba. apetece-nos que o vento fosse tão forte que nos arrancasse os cabelos, nos refrescasse a alma, fosse isso possível, ao menos. no momento seguinte à clarividência, toca o telefone, alguém sussurra alto demais, trauteia uma cantiga. e a atenção desmorona-se sobre o nosso próprio colo. e queremos infinitamente aqueles que amamos mais perto. nesse momento. nesse preciso momento.
diário de vila do conde 40
no meio da concentração escondida atrás dos écrãs dos computadores, fala-se de futebol, do benfica. uma entrada deste diário será o jorge melícias a fugir um pouco antes das seis para ir ver o benfica, outra entrada serei eu a consultar no telemóvel o resultado do sporting, bem a meio do jantar de despedida.
diário de vila do conde 39
tenho agora a certeza que choveu a noite passada. enquanto adormecia um estrondo tomou a cidade, mas ao acordar, do aguaceiro apenas uma réstia de água sobre o telhado do tribunal. tenho agora a certeza que choveu a noite passada. não o sei por nada mais do que pelo cheiro renovado da cidade.
diário de vila do conde 38
uns dormem. dormem profundamente e quase que consigo imaginar-lhes os sorrisos satisfeitos por estarem a sair, só agora, debaixo dos lençóis bem quentinhos. o meu corpo é o peso das palavras acumuladas, a cabeça sem descanso. mas o sorriso, sim, o sorriso existe.
diário de vila do conde 37
o bairro vietnamita de praga não tem nenhum multibanco. e isto, não o sendo, poderia parecer um verso do nuno brito.
diário de vila do conde 36
transforma-se o tradutor na coisa traduzida, por virtude de muito o pesquisar; não tenho logo mais o que desejar, pois em mim tenho a parte desejada. se nela está minha palavra transformada, que mais deseja o poeta alcançar? em si somente pode descansar, pois consigo tal alma está ligada. mas esta linda e pura semideia, que, como o acidente em seu sujeito, assim co'a a alma minha se conforma, está no pensamento como ideia; e o vivo e puro ardor de que sou feito, como matéria simples busca a forma.
diário de vila do conde 35
a poesia de petr borkovec não é evidente. tem uns muros altos, na entrada, que chegam a ser pouco convidativos. demorei dias a chegar-lhe, a entender-lhe os versos, as palavras. digo-lhe, no cais de gaia, que me sinto próximo da ambiência de desolação que ele carrega nos seus poemas. ele ri-se, como quem não acredita ser possível que se lhe perceba assim o âmago do que escreve. no seu comboio:
os céus abrem, dilúvios de luz: pai
com filha adulta, macia, eu, o cheiro
das roupas molhadas, alguns lugares atrás uns soldados.
diário de vila do conde 34
a casa josé régio - mantida exactamente como o poeta a deixou - é um lugar de morte. uma imensa colecção de arte sacra, da qual se desconhece a sua proveniência, apenas que o poeta a foi adquirindo durante a vida, em todas as salas, em todos os andares da casa. no escritório, no quarto, na sala de receber visitas, na sala de jantar, nas arrecadações. por todo o lado um contacto directo com a morte, um peso exagerado para um ser humano carregar às costas. um castigo, provavelmente, um castigo. só no jardim, junto ao limoeiro, nos apercebemos de que aquele espaço teve alguém com vida dentro. só no jardim. assustador.
quarta-feira, 17 de março de 2010
diário de vila do conde 33
repousa a mão, guerreiro, que o corpo já te dói de lutares contra as palavras. repousa a mão, respira, abre bem os pulmões ao ar. repousa a mão, guerreiro, deixa que a cabeça se esvazie e passe a buscar novas sensações naquilo que vês. amanhã será um novo dia. amanhã será um novo dia.
diário de vila do conde 32
sempre uma palavra melhor, há sempre uma palavra melhor. e quanto gozo no caminho de a encontrar, meu deus, quanto gozo. sempre uma palavra definitivamente melhor.
diário de vila do conde 31
tão engraçado como transformamos poesia em aparentes factos e factos em aparente poesia.
diário de vila do conde 30
subi ao andar de cima da casa da memória e, no meu regresso, a sala cheira a laranjas.
diário de vila do conde 29
a poesia também serve para levantar a voz, para discutir, para mergulhar. a poesia também serve para nos chatearmos uns com os outros, ou não fosse a poesia como todas as outras coisas.
diário de vila do conde 28
procura a palavra, encontra a palavra, resolve a palavra. procura o ritmo, encontra o ritmo, resolve o ritmo. agora relê. percebe que a palavra prejudica o ritmo, o ritmo não entende a palavra. começa de novo. começa de novo.
diário de vila do conde 27
o dia amanheceu cheio de sol, uma vaga promessa de calor, uma cidade a acordar. o dia começou com um banho quente, um livro de poesia na varanda, o cheiro dos cigarros dos outros. o dia começou com o pequeno-almoço, o rádio ligado, as capas dos jornais. o dia já começou. já começou e agora.
diário de vila do conde 26
uma entrada deste diário é o jorge melícias deitado no sofá da sala enquanto eu leio poesia em voz alta e vemos os resumos da liga dos campeões.
diário de vila do conde 25
ivan strpka está sempre a surpreender. durante o jantar, com o chelsea-inter em fundo, pudemos conversar sobre o futebol checo-eslovaco. falamos de viktor, um grande guarda-redes que foi campeão da europa nos anos sessenta, depois de ter defrontado o brasil em 58, na primeira final mundial com estes dois países. falámos de dubovsky, o eslovaco que chegou ao real madrid e, ao que parece, acabou por falecer num acidente de automóvel. falámos de weiss, um miúdo que está no chelsea e que ivan promete vir a ser um grande jogador. ivan que se lembra de quando o eusébio e o benfica eram enormes. mas isso foi já há muito tempo, ivan, lembro-lhe eu com um sorriso.
diário de vila do conde 24
é mesmo ao lado da igreja matriz, a casa dos nossos sonhos. agora vamos ter mesmo que acertar nos números do euromilhões. depois procuramos um agente imobiliário local e tratamos do assunto. a casa dos nossos sonhos. com algumas árvores e espaço no quintal para que se plantem segredos. com o mercado semanal à porta. com espaço e muitas ruas para os nossos passeios. com o rio e com o mar. com o porto aqui tão perto, para se chegar em pequenas viagens de metro e não naqueles comboios que demoram fins-de-semana inteiros a atravessar o país. é mesmo ao lado da igreja matriz. a casa dos nossos sonhos.
diário de vila do conde 23
a biblioteca municipal josé régio é a biblioteca mais bonita do país. está muito calor lá dentro, neste final de inverno, e eu dispo o casaco e apetece-me encostar-me às prateleiras e aos livros, namorá-los, meter os dedos entre as páginas, deixar-me adormecer. a biblioteca municipal josé régio. a quinhentos metros do mar.
diário de vila do conde 22
ivan strpka, ele, uma vez mais, desce à areia e caminha em direcção ao norte. conta-nos alexandra buchler que ivan tem o costume de se levantar antes das 6h da manhã e descobrir, nas cidades que visita, todas as coisas que estão escondidas da luz do dia. vejo-o afastar-se no reduzido areal e penso se não irá encontrar um robalo ou um corpo de pescador dado à costa, um tesouro vilancondense. só bem mais tarde ele voltará a aparecer, à hora de jantar, e lamentar não ter provado o vinho do porto.
diário de vila do conde 21
ao final da tarde, um intervalo para espreitar o mar. a linha do atlântico tocando vila do conde e caxinas, as pessoas que saíram à rua porque os dias são de sol, o mar tão calmo que parece o mediterrâneo. ao final da tarde, um intervalo para espreitar o mar. enormes casas onde vivem pessoas sozinhas, prédios elevados sobre as rochas, um elogio à marquise como símbolo nacional. são quase 19 horas, a noite chega.
terça-feira, 16 de março de 2010
diário de vila do conde 20
ivan strpka não fala inglês, arranha o castelhano e, como ele próprio diz, só resulta na comunicação não-verbal. assim, na sua apresentação, mostra-nos uma garrafa de espírito de ameixa, um licor com 52% de álcool, para além uma antiga edição dos seus poemas traduzidos em português. no final, consegue arrancar, i think this is probably ivan. e o nosso sorriso é um abraço.
diário de vila do conde 19
sessão de perguntas à volta dos poemas de sonata paliulyte. ela fala baixinho, entre gaguejos, contando-nos da felicidade da tradução, dos seus livros de poesia que surpreenderam a recatada timidez da actriz. tento-lhe resolver os problemas de ritmo na mudança para o português e fico com esta passagem gravada na cabeça:
Se alguém salga em demasia a comida,
dizem as pessoas que isso significa estar apaixonada,
mas hoje não terei compaixão.
diário de vila do conde 18
falar de poesia portuguesa para uma sala onde se encontram vários poetas portugueses não é uma tarefa fácil, diz valter hugo mãe. não se sai impunemente dessa tarefa. só num discurso pessoal se pode reflectir unanimidade. com duas opiniões, já se iniciou a divergência.
diário de vila do conde 17
uma entrada deste diário é o jorge melícias a olhar-me do fundo da sala e a perguntar-me sobre o que é que eu estou a fazer.
diário de vila do conde 16
vila do conde luta pelos seus escritores como nenhuma outra cidade onde a abundância destes é tão notória. para além da existente casa josé régio e da futura casa de antero de quental, vila do conde apresenta-nos também a casa onde viveu eça de queirós. cheguei a pensar que os lugares teriam limites para a quantidade de génios que pudessem albergar. mas talvez isso se aplique apenas ao seu nascimento. alguém nasce ali e depois isso torna-se pólo de atracção para outra gente que quer ser/saber do que o criador fazia no seu dia-a-dia. andando pelas ruas, no entanto, continuamos a ignorar os criadores com quem nos cruzamos, porque nenhum deles nos pode dar aquilo que nós queremos agora da sua glória futura. e assim outras casas se abrirão no futuro, acerrimamente defendidas pelas futuras municipalidades, para gozo daqueles que escreverem depois de nós.
diário de vila do conde 15
o meu mar é um mar morto. em cada lugar onde uma onda se desfaz, nada nasce ou cresce que seja natural. apenas repetições de repetições de repetições. o meu mar é um mar que não é mar. não se diz morte do que é vida, nem se diz raiz do que não alimenta corpo.
diário de vila do conde 13
a entrada 13 deste diário é uma soleira onde ninguém pára com receio de dar azar.
diário de vila do conde 14
em tudo parecido com um diário, não seria lícito esperar que isto fosse um diário. ou não seria de esperar, para o leitor, que este homem desse em escrever diários que pudessem ser lido como os diários, normalmente, são. assim, caso não tenham percebido desde o início, será a partir desta entrada que o diário estará, definitivamente, subvertido.
diário de vila do conde 12
no restaurante, uma senhora que é como uma mãe. a querer saber dos nossos gostos, a obrigar-nos a comer tudo o que chega na travessa, a encher-nos mais um copo de vinho. uma senhora que diz piadas, que sorri, que é a dona da casa onde se come. e assim, de senhora do restaurante costa verde, passa a ser personagem de um pequeno texto neste diário. com o mesmo sorriso, a mesma hospitalidade, a mesma maneira de receber. mas aqui.
diário de vila do conde 11
tudo, num encontro, é sobre ganhar familiaridade. com as pessoas, com os lugares, com o lugar onde te alimentas. tudo é sobre te ser confortável sentares-te numa cadeira ou num sofá e começar a falar sobre ti mesmo. os poetas não são bons conversadores, a maior parte do tempo. é um esforço violento, para a maioria das pessoas que aqui estão, começar a falar. mas, num encontro, tudo é sobre ganhar familiaridade. com um prazo. uma semana.
diário de vila do conde 10
agora descobres a cidade, faz-se tarde, mas percebes que aqui, há 500 anos atrás, se construíram grandes igrejas, se alimentaram as almas com freiras doceiras, e se inventaram as alfândegas que cobraram os dízimos e orientaram as importações. agora descobres a cidade, faz-se tarde, e percebes que de vila do conde partiram para o mundo todo o tipo de embarcação, com pequenos homens feitos cativos de um sonho que não teve qualquer seguimento. pode ser triste, mas foi o que restou.
segunda-feira, 15 de março de 2010
diário de vila do conde 9
com o alberto manguel e a história da leitura na cabeça (e também na mala), vou compilando informações que apoiam ou contradizem as suas teses relativamente aos leitores. no jantar de ontem fui surpreendido por uma história que me deixa a pensar que talvez a força da cultura em que crescemos não seja assim tão decisiva, quando ficamos expostos a outras culturas. o facto é o seguinte: um português de dezanove anos, habitual leitor de livros de manga, pegou numa banda desenhada do astérix e não compreendendo bem a história, só mais tarde se apercebeu de que tinha começado a ler o livro a partir do fim. ou seja, mesmo com anos e anos de leitura da esquerda para a direita, uma exposição intensa a uma leitura com outra formatação levou-o a hesitar perante o livro. ou seja, tudo no homem é mutável. tudo.
diário de vila do conde 8
perante a possibilidade de reconstrução do poema, pensas muitas vezes em cortá-lo, apará-lo de excessos, fazendo-o teu. perante a possibilidade de reconstrução do poema, procuras novos materiais, mais resistentes ao tempo, à língua e ao teu olhar. saberás, certamente, que esse poema deixará de ser aquilo que um dia foi, mas algo de completamente novo. não lhe chames tradução. assume o papel de traidor. com causa.
diário de vila do conde 7
eu não nasci o outro, mas o outro é o lugar onde eu posso chegar. eu não nasci sequer eu próprio. eu ando entre o cá e o lá do universo, buscando, buscando.
diário de vila do conde 6
a pouco e pouco vais construindo a tua ideia de cidade. juntas as ruas que conheces através de novos atalhos, encontras o sol nas esquinas, percebes as caras das pessoas. voltas ao mesmo café e, de repente, já és um cliente habitual. as cidades pequenas são assim, querem-nos delas, esforçam-se por nos engolir para a sua identidade. tu deixas-te ir, a tua força é o que é, não queres (nem saberias) como resistir. a pouco e pouco vais construindo a tua ideia de cidade. e, mesmo que sem o percebas, algo de ti já é daqui.
diário de vila do conde 5
para começar, estes poemas têm já uma primeira tradução, não sei se fiel, se metafórica, certamente difícil de se chegar, porque o inglês não é o lituano, o letão, o checo ou o eslovaco. portanto, entre a minha língua e o poema há já uma barreira, que é uma língua que se afasta das duas línguas da poesia. depois, há que, primeiro, tentar compreender o que o poema tem dentro, para que mais tarde, depois de ler e reler este rascunho feio, encontrar nele o brilho que será um poema em português. vão doer-me os dedos, de tanto polir.
diário de vila do conde 4
primeira manhã de trabalho. mergulho finalmente nos poemas, nos primeiros poemas que escolhi a caminho daqui, aqueles que numa primeira leitura me despertaram a atenção. mergulho neles agora já com a cara dos poetas, algumas palavras apenas, quase todas de circunstância. precisava eu dos poetas para os traduzir? não creio. mas dar-lhes um corpo faz-me perceber de uma outra forma as palavras que lhes percebo. e isso é um caminho.
diário de vila do conde 3
todos pensamos que podemos fazer alguma coisa em tempo real. transmitir ideias, sentimentos, imagens. mas, na verdade, estamos sempre em diferido. até para nós próprios. diferido.
diário de vila do conde 2
alguns nomes trazem consigo todo o tamanho das coisas. fico a pensar em centro da memória. e em vez de uma casa, um lugar no meio de uma cidade, penso no centro da memória, algures dentro da cabeça, algures perdido onde todas as coisas se encontram misturadas. pode ser algo assim, na verdade, esse centro. e para lá caminhamos.
diário de vila do conde 1
vila do conde é uma pequena cidade a norte do porto. já cá havia passado algumas vezes, quase sempre sem parar, reparando apenas em como as casas são antigas, em como as lojas mais tradicionais ainda ficam abertas, em como uma larga praça é usada para um mercado. de vila do conde sabia também o mar, as caxinas, algumas pessoas. cheguei com o início da noite, a uma enorme casa onde vou ficar esta semana. uma das ideias é escrever um diário destes dias. logo veremos.
sábado, 13 de março de 2010
outro desejo
onde tu estiveres, deixa que as palavras te banhem o corpo, te salvem a alma, te recuperem para que nasças, todos os dias, uma e outra vez.
o desejo desejo
onde tu estiveres, deixa que o desejo seja incendiário, e que tudo em tua volta se prepare para a consumição pelo fogo, permite que tudo em ti se entregue, agradável e lento, como algo que não acaba nunca.
sexta-feira, 12 de março de 2010
seguir
não acredito no pecado, nem na salvação. não acredito em nada do que não possa ser feito com a nossa cabeça ou as nossas mãos. acredito, isso sim, na infinita capacidade que temos para criar vidas dentro da vida. e por aí seguimos, a cada momento, criando o que podia ser o pecado, o que podia ser a salvação, o que podia ser algo que não fosse feito com a nossa cabeça ou as nossas mãos. por aí seguimos, por aí seguimos...
respirar
ontem à noite ouvi uma sala respirar. entre o fim da pergunta e o início da resposta, a pausa de quem quer acertar sempre o verso. malhar no ferro e produzir a faísca. ouvi uma sala respirar, pendurada dos lábios do poeta. e embriaguei-me de beleza.
ânsia
o corpo mole, mole, mole. a cabeça viva, viva, viva. entre uma coisa e outra todos os nervos, músculos, esqueleto, articulações. entre uma coisa e outra uma ânsia enorme de não saber o que esperar. em determinados momentos, sabemos que sair da casca que nos protege é uma violência. uma violência dar assim a cara, os olhos, aos olhos dos outros. dar as nossas palavras aos seus ouvidos. não saber mesmo nada o que esperar, nada. e uma fragilidade lenta e grandiosa invade-nos todos os poros. queres baixar a cabeça, queres chorar, queres fechar-te em casa. queres continuar a fazer, a fazer, a fazer. entre esta e aquela coisa uma ânsia enorme de saber muito bem qual o caminho. e segui-lo, no fim de tudo isto. segui-lo. apenas.
quinta-feira, 11 de março de 2010
igual
todas as manhãs marcas na estrada o cheiro dos pneus, no meio do trânsito o olhar espera o sinal verde, na rádio a voz curiosa do comentador, a palavra ensonada do leitor dos jornais. todas as manhãs, na estrada, o carro que acelera, a mão que mete a mudança, o pé na embraiagem, o pé no chão, o pé no ar, qualquer coisa e sentes que se levanta num voo o carro. todas as manhãs, a tentar marcar a giz uma alteração no trajecto, uma curva feita de outro modo, tão perigoso para o código da estrada mas tão necessário para que nem todas as manhãs sejam iguais.
suave
deixa entrar pela porta os novos sons da casa, os sorrisos, as palavras incompletas da amizade que se inventa. deixa entrar pela varanda o sol que nos ilumina a conversa. deixa, também, marcado nos dedos, o suave toque inaugurador deste dia. suave, suavemente.
quarta-feira, 10 de março de 2010
princípios
não há maior satisfação do que ver um tipo muito chato implicar com o gajo certo.
terça-feira, 9 de março de 2010
estourar
estourou o dinheiro todo em qualquer coisa que agora não vem ao caso, o que interessa é que estourou o dinheiro todo, parecia uma bombinha de carnaval, pum, e logo a seguir só ficou aquele mau cheiro, aquele mau cheiro que as bombinhas deixam, mas este era de pobreza e desolação, desilusão, uma desilusão enorme, por ter estourado assim, e logo a seguir tudo começar do zero, mas um zero ressentido, obrigado e triste, a começar outra vez.
memória apagada
não me lembro bem de quando foi, a certo momento, na minha cabeça, enfim, na minha cabeça tudo pode acontecer, não me lembro bem de quando foi, a certo momento, a certo momento, sim, na minha cabeça, não me lembro bem, não me lembro bem.
segunda-feira, 8 de março de 2010
mulher
por isso hoje, mulher, ofereço-te memória. memória do dia 8 de março de 1857 onde em nova iorque um grupo de operárias fabris se manifestou contra as más condições de trabalho e os baixos salários. memória de 1908 quando, na mesma cidade, mais mulheres se manifestaram a favor da redução do horário de trabalho e do direito ao voto. memória de 25 de março de 1911, quando um incêndio matou 146 trabalhadores (a maioria costureiras) numa fábrica sem condições. memória de 8 de março de 1917 quando as operárias russas se manifestaram contra o czar, denunciando a sua fome. memória também de todos aqueles que em diferentes datas, regimes políticos, países do mundo, quiseram transformar o dia internacional da mulher em festejos manipuladores das vontades das mulheres, apelando ao seu ingresso em causas laterais aos seus interesses. por isso hoje, mulher, ofereço-te memória. e guardo as flores para outro dia. outro dia que seja de festa. não hoje.
nada
mas eu não posso gostar de flores, não, perguntava uma, pois claro que podes gostar de flores, até ao dia em que perceberes que a flor não é atenção mas distracção, e que enquanto a seguras vai aumentando a lista de coisas que tens para fazer e tu, sim, tu, sem poderes dizer nada.
flores
flores no dia internacional da mulher, e elas riem-se, sem se lembrar que este dia foi para ganhar direitos, ganhar voto, ganhar respeito de ser cidadã plena tanto dentro como fora de casa, mas não, flores, aceitam flores, seguem melosas pela rua, a imaginar amores e príncipes encantados que não existem.
domingo, 7 de março de 2010
anjos e demónios
os anjos chegam a acordo, os diabos não. os anjos passeiam pela rua, dão os bons dias, oferecem simpatias. os diabos fecham-se na casa que é a nossa cabeça e esperam, só esperam. esperam pela oportunidade de dizer uma palavra. e apenas com uma palavra conseguem incendiar cérebros e corpos. depois, em fogo lento, nós sorrimos as nossas dores, aventuras e planos que talvez nunca cheguemos a concretizar. lembramos o pacto dos anjos e sorrimos, satisfeitos. não uma satisfação por provar o perigo, mas por nos sabermos completos e capazes de conviver com anjos e demónios.
poesia
em cima da mesa os livros de poesia. a cabeça abre-se a pouco e pouco, os cabelos vão caindo e os dedos escondem-se entre as barbas. em cima da mesa os livros de poesia. o mundo feito em versos, as mãos que procuram significantes. em cima da mesa os livros de poesia. a verdade reside, algures, por aqui.
claridade
as janelas abertas e, quando se esperava a chuva, o sol chega, as pernas fazem-se aos caminhos, passeamos juntos à beira-mar, e em casa as janelas abertas, os cheiros da rua a invadirem-nos a sala e o quarto, a claridade a ser mestra do dia que provamos hoje.
sábado, 6 de março de 2010
quase domingo
põe a mesa, traz os pratos, sopra a comida, sente-lhe o cheiro, come. levanta a mesa, lava os pratos, olha a janela, abre um livro, lê. põe a mesa, aquece o chá, traz os bolos, sopra o chá, come. levanta a mesa, abre um livro, sente-lhe o cheiro, saboreia a aventura, lê. põe a mesa, traz os pratos, sopra a comida, sente-lhe o cheiro, come. levanta a mesa, lava os pratos, lava as chávenas do lanche, fecha a janela, dorme.
a noite passada
a noite passada, no café mar adentro, ali ao fundo da rua do alecrim, encontrei a emoção da literatura nos olhos de um rapaz. falava de sonhos e de paixões, tomado pela leveza que nos pode apenas ser cedida pela magia com que os livros enfeitiçam as nossas ideias. falava de revistas, bulhas de poetas, poemas premiados com bacalhaus. a noite passada, no café mar adentro, (acreditem, mal se passa aquela porta de bar inglês, é com se se entrasse no fundo do mar, onde tudo tudo é possível), eu encontrei um sorriso e a cura para as minhas dores de costas. encontrei alguns livros, várias palavras, gente feliz. a noite passada, meus amigos, a noite passada.
para o hugo milhanas machado
para o hugo milhanas machado
sexta-feira, 5 de março de 2010
afirmação
não nego que alguns tipos perturbados tenham feito coisas belíssimas. nem nego que alguns jovens sem preparação sejam responsáveis por enormes páginas de poesia. mas a idade e a delimitação do espaço criativo são os melhores amigos da arte. disso, não tenho dúvidas.
génio
há uma ideia feita de que o génio é um gajo indisposto. que a tristeza, a mágoa, a dor são produtivas. que a perturbação ajuda à criação. a minha arte poética é contrária. preciso de sossego. de tempo. de calma. e aí, sim, no meu campo crescem textos. muitos. com ou sem chuva que os regue. eu preciso de estar bem comigo. apenas isso. o resto, é trabalho.
um ano
passou-se um ano, já. e a este ano eu agradeço a boa cabeça que me fez poder escrever todos os dias. ou escrever ou ler. todos os dias. a cabeça que me faz acreditar que o trabalho tem resultados. a cabeça que me sussurra um tema, uma palavra, uma frase, quando elas parecem não querer sair dos dedos. passou-se um ano, já. o homem que queria ser luís filipe cristóvão ainda é o homem que queria ser luís filipe cristóvão.
quinta-feira, 4 de março de 2010
partida
deixa a mala na praia, o barco parte dentro de segundos. deixa a mala na praia, os pés na areia, o lenço a esvoaçar. o barco parte e depois quem saberá o que nos resta. eu no mar e tu em terra. deixa a mala na praia e molha os pés na onda que se desfaz. talvez o sal, um dia, nos volte a ligar.
filme
descendo a escadaria enorme, os lugares vão ficando mais concretos na nossa cabeça. é assim que funciona a construção do lugar: um olhar ao longe que vai encontrando definições, um corpo que se adapta ao espaço, a cabeça a delimitar as zonas da personagem. descendo a escadaria enorme, virando à direita. e o filme começa.
sol
nem com as persianas baixas se apaga o sol do nosso quarto. já passava da meia-noite e ainda brilhava sobre as nossas cabeças. já passava da meia-noite e ainda o sol nos aquecia os corpos num abraço. nem com as persianas baixas, nem com nada. nem com o protector solar, os óculos escuros. o sol brilha. o sol brilha em nós.
quarta-feira, 3 de março de 2010
conta
eram seis poetas japoneses, uma ilha fechada, uma maré imensa. eram cinco estrelas apagadas, um foguetão inútil, um vento gelado. eram quatro peças húngaras, um compositor falhado, um instrumento sem cordas. eram três pequenos animais amestrados, um domador alcoólico, um chicote esquecido. eram duas mensagens escritas, uma mão quebrada, um dedo levantado. era um sonho reescrito, uma composição infestada, um ligeiro adeus.
cantar
eu não quero cantar outra vez a saída da estrada, a lição de condução. não quero sussurrar a destreza, dinamitar a sobriedade. no entanto, chove sobre o asfalto que se desfaz em cada curva. no entanto, o carro desliza descontrolado sobre o terreno enlameado à beira da estrada. mas eu não quero cantar. não quero cantar.
recorte
recorto as palavras mais pequenas para que caibam debaixo das unhas. as unhas crescem e eu passo-as pelo cabelo. as palavras ficam presas nos cabelos, desaparecem com o vento. algum dia, alguém encontrará uma palavra no casaco. sem saber de onde ela veio. uma palavra.
terça-feira, 2 de março de 2010
canto
das muitas lições dadas, quase uma a cada palavra saída da sua boca como um megafone onde crescem nenúfares, copio com um pequeno lápis entre os dedos, as funções enérgicas da alma do poema. o doutor senta-se no café e canta. canta com os braços bem perto da mesa, canta com uma letra que sugere segurança recatada. nós assistimos como quietos, o tamanho dos nossos corpos a reduzir-se perante o palco onde o doutor cresce, e percebemos os nenúfares sobre a água, enquanto fora chove e as pessoas correm, despercebidas. nós assistimos e, nos dedos, um pequeno lápis, sublinha as palavras caídas nos cadernos onde o amor é ainda um território do possível, algures entre a realidade de uma meia de leite e toda a poesia do mundo.
para pedro eiras
muro
das muitas palavras que leio repetidas nos teus versos, ainda me sobra na boca o sabor metálico da pele. receio bem ter entrado no lugar onde o terror se encena a cada momento. receio, embora seja sempre de tempestade o campo da poesia. das muitas palavras que leio repetidas nos teus versos, saboreio também a festa iluminada da vida. a procriação, as mulheres, as mães, os filhos. das muitas palavras que leio repetidas nos teus versos, todo um mar de líquidos espessos, todo uma cruz carregada sem religião. não cometamos como loucos sobre os muros desconhecidos. a atenção é, ainda, um privilégio dos fracos.
para jorge melícias
a cadeira
puxa uma cadeira, ainda agora aqui cheguei e já é tanto o tempo deslocado, as janelas abertas por onde o vento nos invade os cabelos. tudo sai do lugar, tudo recomeça. puxa uma cadeira. na cabeça alguns versos de poemas antigos, alguns dizeres que tentamos compreender na distância, onde tudo é um lugar para ter os dedos, um território conquistado ao desconhecido. foi há muito tempo, foi agora mesmo. puxa uma cadeira. olha lá fora. a casa é ainda o reduto da poesia. ainda. a cadeira.
para joana rios
segunda-feira, 1 de março de 2010
idade
chegaste a uma idade onde dizes as coisas como elas têm que ser ditas. não tens medo do que os outros pensam, não tens medo de te fragilizar. e quando gostas, gostas muito e dizes, dizes nos olhos. os outros assustam-se, os outros retraem-se, os outros também podem estar numa idade em que tudo isso faz sentido. chegaste a uma idade. é um lugar de onde não se pode voltar atrás. felizmente. felizmente.
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