segunda-feira, 22 de novembro de 2010

foto de luís filipe cristóvão

a primeira verdade

sete anos a escrever diários anti-pessoais, uma maneira de simulares intimidade com uma série de gente que tu desconheces. até que chegas à idade em que só deves fazer o que te apetece.

agora não me apetece.

domingo, 21 de novembro de 2010

desaparecer

"vou por um caminho escondido, não vá ver alguém conhecido". rumino assim as palavras dos outros num sentido tão claro dentro da minha cabeça. apetece-me balouçar lentamente ao som da música. até que, de vez, eu possa desaparecer. até que, de vez, seja bom desaparecer.



citação de O Cão da Morte na música a madrugada da minha rua.

sábado, 20 de novembro de 2010

corrida

corre, corre, corre, entre as cadeiras, corre, corre, deixa as maneiras e descobre o sorriso nos meus olhos. corre, corre, anda, sopra entre os lençóis na cama, as palavras inventadas que te entram pelos ouvidos. (e depois - e depois - laços de dedos, bandeiras de pernas. e depois - e depois - solta os cabelos, beijos às dezenas...) corre, corre, corre, solta as mãos e o universo, inventa mais um excesso, até que adormecemos os dois.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

na mão

não, na mão, não, sei lá, então, a solidão está tantas vezes no discurso. não, não sei, dizer, melhor é ver, enquanto os outros nos revelam o percurso. agora há tanta gente que não sabe para onde vai. agora no intendente abrem lojas monges thai. não, na mão, não, para lá do não, ferrados dentes numa côdea já sem pão. não, não sei, dizer, melhor é ver, enquanto os outros agora nunca aqui estão. os rios que atravesso não têm para onde correr. mergulhadores experientes afundam-se até morrer. agora há tanta coisa que não consigo esquecer.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

endereço

se ao mais pequeno abraço, nasce em ti o embaraço, então deixa que o contacto seja apenas a memória. pois se é velha a nossa história, aconselha-se o recato, e arruma o embaraço numa distante vitória. se ao mais pequeno gesto, tu já vês um recomeço, então deixa que o endereço seja assim desconhecido. mais valia ter morrido, quem se preserva insensato, e arruma o recomeço num resumo mais sentido. e então deixa que o contacto seja apenas a memória, pois já sabes que o endereço é hoje desconhecido.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

corpo

o meu corpo encerrado, fecho os olhos e adormeço. para mim nada peço, só encontro retrocesso. o meu corpo encerrado, noite dentro, respirando. com isso, eu vou contando, pouco importa o resultado. o meu corpo encerrado, minha alma posta à parte. tomara que se alastre, tanta vida ao desencanto. em tão grande quebranto, só meu corpo é levado.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

desencontro

mais nenhum tempo, a boca cosida com a linha mais forte, o corpo abandonado - assim são os ciclos da desordem, as manhãs mais breves da história. mais nenhum tempo, certa a urgência de acabar ou começar algo outra vez, e todas as impossibilidades serem físicas ou metáforas que ficaram por dizer - eu que nunca sei a ordem certa da assistência. mais nenhum tempo, a mão no peito enfiada, os olhos muito abertos, dizer-te o quê, quando o que te quero dizer está dito com os actos, com os gestos distantes, com a boca imóvel - resumo abreviado de um certo desencontro.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

dedos

os meus dedos silenciosos não são máquinas, deslizam apenas pela pele mais macia, pelo olhar mais quente, pelo lugar mais doce. os meus dedos silenciosos como lábios, elevando-se entre os lençóis, padecendo de desejo e agitação. os meus dedos silenciosos são fantasia, quase nunca existentes de verdade. os meus dedos silenciosos, como uma eternidade guardada no bolso.

domingo, 14 de novembro de 2010

fica

e depois, se precisares de mim, ficas sabendo que não estou. não, não me mudei, apenas registo a temperatura das campainhas, alimento o olhar com outros ventos, choro lágrimas de crocodilo nocturno, qualquer exclamação como essas. e sim, depois, saberás também como me esqueci das pontuações, anotações, lamentações. cócegas no peito, diria eu, e tanta água ainda por beber. e depois, bem, depois, faz o que quiseres. se precisares, ficas sabendo que não estou.

sábado, 13 de novembro de 2010

fotografia no telemóvel

orçamenta-me as costas, já que agora é dia de crise, orçamenta-me as ideias, as tristezas, a beleza, orçamenta-me sim, com delicadeza.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

calendrop

a onze, às onze, no onze, do onze.
a doze, às doze, no doze, do doze.
a treze, às treze, no treze, do treze.
a catorze - stop!
a onze, às onze, no onze, do onze.
a doze, às doze, no doze, do doze.
a treze, às treze, no treze, do treze.
a catorze - hump! hip! stop!

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

diálogo

quem? ele - hum? - isso - não - sim - hein? - pois - ah!

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

bonito

coisas bonitas - uma faca apontada ao coração, a carne a rasgar-se e as entranhas revirando-se, o cheiro, antes do sabor, do vómito subindo pelo teu corpo, o coito interrompido, o jacto adiado, a faca a atingir o coração, borrado de merda por todos os poros, tão forte o choque em todo o corpo, tão forte a imagem que te esqueces, uma vez mais - coisas bonitas, pediam-te, coisas bonitas, pois.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

cem à hora

o carro a cem à hora e tu choras - eu digo-te o que é abusar, digo-te o que é sentires-te sempre do lado de fora das coisas, a permanente insatisfação, o saber que as coisas não tem lugar - e tu choras e gemes quaisquer palavras inconfessáveis - quero lá saber do estado da nação, do estado do tempo, do estádio de evolução de seres vivos como tu, agarrados ao moral e às boas obras - o carro a cem à hora, o carro a cem à hora - e chorar, sim, chorar, um rio de lágrimas a escorrer pela face.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

dor

o corpo todo dói e não há maneira de encontrares posição para adormecer - logo hoje, porra, logo hoje - uma série de asneiras e impropérios saltando da boca, como se não tivessem medo de andar a pé na auto-estrada, como se fosse possível tornarmo-nos imortais sempre que quiséssemos. o corpo todo dói, a cabeça toda explode - e a quantidade de razões para te sentires assim a repetirem-se, como sussurros, ao teu ouvido - até que seja de manhã, até que seja, finalmente, de manhã.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

convicções

talvez o melhor seja mesmo não construir dúvidas por perto das convicções. deixar que as coisas aconteçam como o previsto, decidir sempre em consonância com os parceiros, remeter à unidade do que fazes todos os processos da construção. talvez o melhor seja mesmo não colocar em perigo as convicções. porque há um plano (há), porque há um propósito (também), e as decisões devem seguir o plano, enquanto o plano for, por todos, considerado o melhor (quando se quiser mudar o plano, então sentam-se as pessoas à mesa e muda-se o plano). por isso mesmo, não construas dúvidas por perto das convicções. uma coisa bem feita será sempre uma coisa bem feita. às outras, gabando-lhes a sorte ou o engenho, verás sempre que o tempo terá sobre elas uma palavra a dizer. 

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

bolsos

remexe sempre os bolsos vazios, se sai à rua de casaco. remexe os bolsos, as mãos que não param, a boca como se falasse, contasse baixinho às coisas os pensamentos que não se concluem. remexe sempre os bolsos vazios, onde talvez um lenço, um recado, uma conta de supermercado. remexe os bolsos e os olhos tremem-lhe,  a rua alonga-se para lá da própria rua, qualquer travessa faz uma cidade. remexe os bolsos, sim. de nada valerá que lhe chamem a atenção.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

lutar

lutar contra a história, não, mas não deixar também que a história nos tome o tempo e o uso da folha onde se escreve. tudo terá o seu lugar e a repetição cansa-me. os olhos começam a fugir página abaixo, a fazer do texto uma escada que se desce a correr. lutar contra a história, não. a história já está contada e, se não me seguram para um segredo ainda por revelar, porque me demoro aqui? fecha-se o livro e apaga-se a luz. lutar, não.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

raízes

não, não vou ficar por aqui, as minhas raízes não são de uma terra que não as alimenta, e não ficarão à espera de definhar. não, não vou ficar por aqui, ainda que a brisa sopre lenta sobre os olhos, ainda que o conforto seja prometedor. dizia, para mim mesmo, como o conforto acaba sempre por nos magoar, quando o corpo se acomoda ao lugar onde se arruma, e o lugar onde se arruma envelhece e perde as qualidades que oferecia. as raízes, crescem ou não? eu não vou ficar por aqui.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

mortos

não repito o nome dos meus mortos - estão aqui à minha volta, sorridentes, acalentando-me os dias - pois não se chama alto quem está tão próximo de nós. não lhes repito o nome, seguro-lhes as mãos, acaricio-lhes os braços - eles estão sossegados, felizes, quietos. não repito o nome dos meus mortos, não os visito nos lugares da morte - porque seguem vivos, como sempre, com as palavras, os carinhos, os olhares preocupados. de nada a morte contaminou quem morreu, pois não morreram, por aqui seguem, comigo. comigo.

domingo, 31 de outubro de 2010

soletrar

não voltarei a soletrar domingo, não voltarei a repetir ao moço do café a mesma coisa que já nem sequer reconheço, tal a maneira como as letras soltas se indignam ao formar uma palavra que, repetida re-pe-ti-da na boca se desfaz de significados comuns. não voltarei a soletrar pedidos, não voltarei, sequer, para pedir nada. ficamos os dois sentados, os olhares afastados, o tempo que passa. eu não, eu não. algumas crianças a brincar no passeio, algumas conversas sempre as mesmas nas mesas em redor, eu sem soletrar, sem pedir, pois não, não voltarei a soletrar domingo, ou qualquer dia da semana, não voltarei a arder no vazio de uma palavra que não quer já dizer nada.

sábado, 30 de outubro de 2010

adormecer

e agora invento uma maneira de saber cantar uma música para adormeceres e tu adormeces, aí bem longe de tudo, deitas a cabeça, suavemente, sobre o teclado, a luz fica acesa, os pensamentos perdem-se, agora eu invento uma maneira de tudo isso ser possível, enquanto tu inventas a maneira de acreditar em mim, os longos cabelos espalhados pela mesa, um copo meio de água, os pés a arrefecer pela noite dentro.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

autocarro

descer do autocarro - era capaz de ser difícil, tanta bagagem, os óculos escuros, o nariz empinado - a perguntar onde, por favor, posso eu apanhar o metro, apanhar um táxi - a bagagem outra vez, será que te esqueceste de uma das malas, o saco de plástico - e ninguém que soubesse falar essa língua, essa língua cheia de distâncias que inventaste para quem não conheces - senhor, um táxi - homens que correm mal vestidos pelo alcatrão, parece que fumam dos pés - descer do autocarro, se bem me lembro, era capaz, era mesmo capaz, de ser difícil.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

criança

os meus olhos queimados - não restam lágrimas para o calor das chamas - não chorarão mais a língua presa, o dedo quebrado ( o acaso de apontar na hora errada, porta fechada directa ao coração), a ponte liberta. eram onze da manhã de um dia qualquer, comias uma sandes de fiambre, lavavas os dentes pouco depois - da vida sabias nada, apenas um cartão no bolso, algumas moedas para o que desse e viesse ( também penso agora nos quatrocentos escudos que gastei contigo, quatrocentos escudos, quanta fortuna quando nem um beijo me deste), nenhum rancor no coração. os meus olhos queimados - não, não sei de ti - e nunca mais nada entre nós (a tua vergonha, os meus medos, vamos excluí-los da equação), como se nunca mais fosse possível sermos crianças outra vez, como se isso, o tempo inteiro, fosse mesmo verdade.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

prefiro/ lembro

prefiro dizer - não me lembro - ou então romper os pulsos e arder por inteiro numa manhã de domingo: começar a história para quê? qual é o propósito de toda a pontuação, neste coração longe de acertos, será acaso outro país aquele onde pões agora os pés  - travessões e linhas rectas, corações e acordeões, coço a cabeça e desacordo-me a cada passo: prefiro mesmo dizer - não me lembro - prefiro mesmo ficar a um canto do ringue, arrumado como o caldas, lembro-me agora, lembro-me agora (expressão idiomática e o amor fraterno dos homens que se reconhecem).

terça-feira, 26 de outubro de 2010

reconhecimento

não preciso de te reconhecer para desenhar o teu sorriso, nem preciso de uma agenda para perceber agora a hora da madrugada onde nos perdemos, cada um à sua maneira, cada um do seu lado. não preciso de te reconhecer, és apenas uma estrada que preferi não percorrer, apenas uma morada que ficou, desleixadamente, sobre a mesa de pedra do jardim. sim, é de noite. e depois da noite virão todas as manhãs da história da literatura. e depois das manhãs, outras manhãs, os pessegueiros a encher-nos os quintais de cheiros fortes. mas volto ao essencial. não preciso de te reconhecer. é já tarde. não vou por aí.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

noite

vais falar do quê, agora que o corpo um pouco mais morto, algum vinho, alguma cerveja, o fumo dos cigarros, vais falar do quê, agora que chegas a casa e olhas para a página em branco, que recordas metade das conversas, os cumprimentos, um abraço, muitas palavras repartidas, algumas ameaças, vais falar do quê, do passo cambaleante ao subir a rampa, da imaginária jogada que desenhaste na rua vazia, das pessoas que são importantes porque existem e te reconhecem e te oferecem uma parte do tempo, vais falar do quê, do quê, logo agora?

domingo, 24 de outubro de 2010

elegia

que bom ser domingo, as roupas rasgadas, o vento frio a congelar-nos o peito - a ausência de razões para continuar a lutar, neste ou noutro mundo, apenas por ser domingo - os cigarros que acabam, as palavras que escasseiam, a música em repetição no leitor que ficou longe demais dos dedos que não se esticam.

que bom ser domingo, faltar à missa, esquecer a família - a ténue certeza de um lugar comum, porque é hora de tomar café e há sempre alguém com uma frase que nos acerta - tudo ser amargo e pequeno, os olhares que se sentem incompletos, o movimento das pessoas na escada do prédio porque, lá está, é domingo, e tu és o único que fica em casa.

que bom ser domingo. que bom.

sábado, 23 de outubro de 2010

desgraçar

desgraça-te devagar quando arrancares os cabelos da cara - cera, lâminas, algumas lágrimas, um espelho fosco na rua das ideias perdidas. desgraça-te devagar, sim, rompe as ligações entre aqueles que te conhecem e aqueles que te sabem, prefere as beiras das paredes dos prédios da cidade, engole devagar a sopa à hora de jantar - legumes, batata, água, sal, uma tigela rachada no exacto lugar onde encostas os lábios. desgraça-te devagar. só não hesites quando tiveres mesmo que te desgraçar.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

balas

olhar em volta e esperar sempre o pior. o homem-corpo sabe do desejo das balas. olhar em volta, desmedir as causas ou consequências. uma criança passa a correr, um-dó-li-tá, e o corpo-homem que treme. perceber sempre a coisa errada em todas as construções da humanidade. um cão que ladra no andar de cima, uma mulher que chega tarde a casa, um vizinho que canta no banho, uma casa que não dorme. olhar em volta e ver sempre o pior. o homem-corpo sabe do desejo das balas. falta-lhe, na vida e na imaginação, um inimigo que as dispare.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

vomita

mete os dedos à boca, vomita. deixa que as coisas levem o tempo que tenham que levar a retomar os seus espaços, as suas posições devidas. mete os dedos à boca. era de noite e os corpos misturavam-se numa pista quase vazia. quem eras tu, quem eram aquelas pessoas, as respostas confundem-se agora numa memória muito menos que frágil. era de noite, isso é seguro, pelo menos durante uma parte da noite, até que depois nasceu o sol e te lembras de ter fechado os olhos com toda a força que te restava. o horizonte vermelho, a tontura. o estômago revolto, mas ainda nada. mete os dedos à boca, vomita. deixa que tudo possa ser livre de voltar a ser como era. até o teu corpo. até o teu corpo.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

sensação

a minha sensação não sou eu, não sou eu quem se sente metido em atalhos perdidos com palavras a saírem por todos os bolsos das calças, do casaco. a minha sensação não sou eu, algures foi construída a mentira daquilo que ofereço a quem não vê para além da imagem exterior. peço desculpa por vos ter convencido tão bem da ficção que construo, peço desculpa, até, por existir. depois sigo também pelos atalhos, leio-me como que se descobre, encontro sempre, aqui ou ali, qualquer coisa que não posso negar ter-me passado pela cabeça. mas, aí está, quando surge a sensação, mesmo que minha, já não sou eu.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

islândia

nunca aprendi a caminhar no gelo, nunca aprendi a mugir uma vaca - ainda assim calço as botas e saio todas as manhãs, ainda assim fecho os botões do casaco e penteio o cabelo com os dedos, ainda assim sopro o café e digo os bons dias à rua com um cigarro. agora que a estrada é toda um lago, agora que a lama é toda a parte - onde queres que eu vá buscar as sensações que ficaram nas camisas do verão, nas saias das moças que correram pelos terrenos, eu sei muito pouco de todas as coisas que não mudam, sei quase nada das coisas que não ficam. eu disse-te - nunca aprendi a caminha no gelo, nunca aprendi a mugir uma vaca, que uso tenho eu para as coisas que pertencem ao inverno?

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

boca

ela tinha na boca a luz e entre as pernas o segredo dos afectos. recebia-me com a leveza das tardes limpas e o sorriso das crianças encantadas. depois, despia-se devagar pelos corredores, apertando-me os braços e as ideias. puxava-me pela língua, fazia-me falar. ela tinha na boca a luz e o seu sexo era afável e afectuoso. recebia-me em silêncio, a água escorrendo pela parede. depois, eu segurava-a como quem adormece, temia-a na sua fragilidade e deixava-me cavalgar como quem esquece. ela tinha na boca a luz, ainda, e entre as pernas eu encontrava-me acordado. nada do meu corpo restou marcado, apenas o sorriso luminoso me atraiçoa os pensamentos, se fecho os olhos, se apago a luz.

domingo, 17 de outubro de 2010

anúncio

não vou ficar o corpo pesado, a face caída, não vou ficar especado nas vidas dos outros, não vou. assemelho-me, em tudo, a uma brisa que sopra por entre as ervas daninhas, por entre a terra lavrada, por entre as flores pisadas na beira de uma estrada secundária. não sou o lixo das primeiras páginas, nem a homenagem sem lógica do suplemento. não vou ficar o corpo pesado, o pensamento fixo, não vou ficar deitado no meio do caminho-de-ferro abandonado, não vou. ainda me lembro da porta fechada, do corredor vazio, do telefonema não atendido. ainda me lembro do imenso nada das inocências. agora, não vou ficar na esperança, sequer. não vou ficar na agenda, não vou ficar na ementa. recuperando a insónia, uma vez mais, e as distâncias todas rejeitadas pela eternidade das aldeias limpas.

sábado, 16 de outubro de 2010

sábado

porque era sábado outra vez e continuavas ausente do mapa dos desejos, deixei de inventar sensações, fechei-me dentro do espaço ínfimo da manta mais quente da casa. porque era sábado outra vez, os pés descalços sobre o chão bem frio, eu a querer fazer inverno, tu ainda a sonhares verão, e o mapa sempre ausente das palavras que nos dedicamos. soubeste aparecer na hora marcada ou vamos então repetir ao infinito o desencontro das lições, conseguir dizer frases inteiras, conseguir encenar abraços e depois, depois sim, deixar que seja o vazio, o desencanto, sábado outra vez, quantas vezes, na vida.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

apagão

cento e quarenta e sete dias a apagar mensagens das paredes do meu prédio, cento e quarenta e seis dias esquecido do essencial, cento e tantas mãos passadas pelas rugas do edifício, cento e muitas línguas insultadas no processo. tantas e tantas coisas que agora nem me lembro, muitas centenas de pessoas que me olham com desprezo, recuando sempre, enfim, até ao mesmo passo. cento e quarenta e cinco dias e agora o que sei eu, dessas coisas que nas cabeças fazem ninhos, põem ovos, nasce gente. cento e mesmos muitos dias e o calendário desactualizado, dizer disto um poema é ainda pouco para aquilo que eu queria ter mostrado. mas no fim, tudo é apagado.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

mundo

vou deixando que a terra coma os meus pés e incendeio-me devagar como um cigarro. perdi a noção do tempo e agora banho-me no infinito dos teus olhos. consegues ver a vista para lá do mar, mas guardas segredo do número de ilhas que se perderam pelo oceano. eu olho os pés feitos em pedaços, oiço a transmissão radiofónica do homem só. queria ser capaz de enviar uma mensagem pelo éter que são os teus cabelos, mas faltam-me as palavras e, sobretudo, faltam-me as articulações necessárias à construção de um mito. o mundo ainda não é, nunca será, apenas aquilo que queremos dele.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

disco

chegaste como quem recorda e nada daquilo que acontece pode ser visto como a continuação do que ficou para trás. não se encontram narrativas na vida de todos os dias, sabes disso. já deste as cabeçadas que tinhas que dar na vida, agora esperavas uma surpresa, mas não era para acontecer assim. sentaste-te na mesa do café e a tua mão fugiu para a dele. qualquer coisa que começava agora como nunca. qualquer coisa que não tinha estado programada. gostas do toque, faz-te sentir serena e poderosa. chegaste como quem recorda e nada disto era recordado nos tempos que passaram. queres o corpo vivo, queres o corpo dele. entregas-te num beijo, ainda tímido, já desejoso, como se fosse possível que tudo acontecesse dentro de uma redoma que nos protege. já deste as cabeçadas que tinhas que dar na vida, agora queres algum sossego, algum prazer. ele sabe disso.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

dor

não sei, dói. tanto sentimento mastigado, tanta noite passada acordado, dói. tanto pensamento quantas vezes repetido, quantas vezes ressentido. não vou dizer outra vez da cidade ou das coisas. não vou dizer outra vez da chuva sobre a cabeça na rua errada. simplesmente, espero que amanheça, saio da cama, tomo um banho. espero que as coisas se refaçam com o tempo. mesmo que nunca nada aconteça como queremos. mesmo assim. não sei. dói.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

ínsuas

eu vim de ínsuas, eu fui a ínsuas, a água mais doce carregava o leito frio, o abraço maior foi dado à beira rio, eu vim de ínsuas, eu fui a ínsuas.
eu vim de ínsuas, eu fui a ínsuas, nome mais belo bailou entre meus lábios, na minha língua encontrou significados, eu vim de ínsuas, eu fui a ínsuas.
eu vim de ínsuas, eu fui a ínsuas, alguma parte de mim por lá ficou, bem outras mais em mim vivificaram, eu vim de ínsuas, eu fui a ínsuas.

domingo, 10 de outubro de 2010

casa de alba

albergaria-a-velha está parada, como tantas cidades do país, num tempo onde já só reside a nossa memória. ainda assim, a memória tem fortes sabores. na casa da alameda, bem junto à estação ferroviária, entra-se na adega e, de imediato, se reconhece a nossa própria identidade. as pessoas são simples e correctas, o pão saboroso, as toalhas limpas. da ementa, escolhe-se umas iscas que caíram do céu, entre a cebolada preparada pelo cozinheiro. muitos quilómetros se completaram e tantos outros se completarão para, repetidas vezes, se voltar a lembrar o dia em que se entrou na esquecida albergaria-a-velha e, numa das casas de alba, se encontrou tal repasto, concreto e achado, nos sabores da memória.

sábado, 9 de outubro de 2010

alto douro

desces o alto douro e, perto de vila real, as vinhas exalam os cheiros compostos do mosto.o corpo reage satisfeito ao abraço, a memória recompõe-se perante a carícia. desces o alto douro, estudas as pedras e as árvores carbonizadas, olhas o mapa das estradas, percorres os lábios com a língua. as vinhas penduram-se nas casas e nas estradas, caem dos montes como se ansiassem a viagem, redescobrem-se, intactas e solidárias, no vinho que está prestes a acontecer. desces o alto douro. haverás de voltar.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

gimonde

nunca nenhum outro silêncio como este. nunca nenhum outro sossego. aqui, nem os animais respiram alto. as ruas desfazem-se no eco do sino, os passos ecoam leves por toda a aldeia. nunca nenhum lugar assim. a ponte romana, as pedras no rio, os cães e os gatos adormecidos. não consegues perceber porque te sentes tão diferente ou tão feliz num lugar assim. és da idade das pedras e os olhos tens-nos fechados. nunca nenhum outro silêncio onde se acorda a meio da noite como a meio do dia. as palavras rareando e as palavras reencontrando-se. não, não sabes explicar. nunca nenhum lugar como este. nunca nenhum lugar assim.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

ohio em bragança

chegas a uma cidade, percorres alguns metros, dás de caras com uma livraria. quantas vezes o fizeste sem nada que te fizesse entrar? mas, naquele preciso momento, percebes que deves entrar. ainda assim, sobes a rua, sentas-te numa esplanada, percebes como os lugares estão preenchidos por pessoas de origens bem diferentes: um velho a quem lhe falta, apenas, o rebanho, dois casais de reformados chegados da frança, um candidata a actriz e um candidato a director artístico falando, nobremente, sobre um jornal semanal. depois voltas a descer a rua, dirigindo-te à tal livraria, onde o mais certo, pensas agora, é não encontrares nada de diferente ou especial. mas, cada momento tem a sua forma de aparecer, e este escolheu-o assim: uma semi-volta à mesa dos destaques e encontras uma capa que já viste mais vezes. folheias, percebes: as tuas ideias têm uma origem e essa origem está dentro deste livro. de um território ou gente distante, como distante estás tu da tua casa, embora agora tudo te pareça tão próximo e pleno de afinidades. ohio em bragança, sais com um livro e um sorriso.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

antigo pasteleiro

ao antigo pasteleiro pode chegar qualquer um dos incautos que percorra as ruas do centro histórico de aquae flaviae. mas no antigo pasteleiro só entra quem o conhece. ou então não entrará ninguém. como todas as portas por estas ruas, parece um comércio de alimentação abandonado, alguém que desistiu do sonho de esperar clientes. abre-se a porta, e um casal sentado olha-nos com espanto. teríamos entrado, por azar, na casa de alguém? parece haver, entre os transmontanos, uma característica forma de receber. nem muito polido, nem subserviente. as coisas são, afinal, como são, para quê grandes rodeios. sente-se quem quiser almoçar, escolha se não tiver já escolhido, coma tudo, não deixe restos no prato. no antigo pasteleiro só entra quem o conhece. mas quem será este antigo pasteleiro que o tempo foi comendo, as portas fechando, o serviço rareando? ainda assim, muitos incautos percorrerão estas ruas até à eternidade...

terça-feira, 5 de outubro de 2010

chaves

haverá uma razão para que as cidades não morram, e não, não são as pessoas que nelas habitam. uma cidade é sobretudo decisão. podemos escolher. as ruas muito bem arranjadas, os edifícios recuperados e as pessoas que vão aproveitando o sol, a amizade, o reconhecimento. assim chaves. assim o prazer de caminhar junto a portas fechadas. assim o prazer de ouvir um sotaque longínquo a falar do lugar como de casa. haverá uma razão para que as cidades não morram. uma dessas razões habita o coração da cidade de chaves. 

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

venda nova

e então o homem sentiu-se deus e disse: que se faça um mar e que esse mar se segure entre as mais altas montanhas. e então o homem sentiu-se pequeno e disse: que se encha esse mar de peixe e que esse peixe cresça e me alimente. e então o homem sentiu-se grande e disse: não mais estas aldeias onde me esqueço de mim, não mais o isolamento da divindade. e então o homem sentiu-se perdido e disse: pregarei no deserto, até me encontrar.

domingo, 3 de outubro de 2010

vieira do minho

foi para isto que inventaram as cidades mais pequenas - uma volta na praça, uma pergunta, e tudo se encontra. foi para isto que inventaram as cidades no meio das serras, no meio das árvores - os pulmões enchem-se de uma vontade de ficar, a cabeça repousa, o olhar interessa-se pelos nomes que vão surgindo, novidades, a cada esquina. foi, ainda, para isto que inventaram as cidades - um lugar onde o encontro faz sentido, onde o silêncio ainda mora, onde as gentes ainda são gentes. da terra.

sábado, 2 de outubro de 2010

braga

ao elogio das ruas inundadas de gente, junte-se as flores, os cafés abertos, as esplanadas - um certo ar de modernidade na cidade dos arcebispos, a banca de jornais estrangeiros à porta da igreja, os cortes de cabelo à bairro alto no comércio mais tradicional. ao elogio das ruas limpas de carros, junte-se a mercearia, o atencioso velho, os sinos desencontrados que tocam a cada momento. respire-se, sobretudo, este ar limpo do início do outono, esta capacidade de ser cidade. respire-se, sobretudo, o gozo de encontrar uma cidade.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

rua da imaginação

de onde eu escrevo, apenas imagino, chove outra vez no quintal dos corpos abandonados, o carteiro chega atrasado a cada manhã, o café fechou, de onde eu escrevo, apenas imagino, de nenhuma pessoa sei um nome que valha, um contacto que resulte, uma face que reconheça, por isso tudo posso dizer e repetir, nenhumas consequências para lá da esquina da realidade, não que isso me sossegue, ao contrário, estou isolado, cada vez mais isolado, e vai ficando solitário viver na rua da imaginação.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

acerta

olha mais longe, ainda mais longe - por cima das cabeças e dos corpos bem potentes, por cima dos equipamentos, bem lá para o fundo - procura encontrar quem corre na direcção do teu objectivo, quem possa entregar no destino a bola que tu prometes - por cima dos ferozes adversários, por cima de todas as tácticas, todas as muralhas - procura e encontra e acerta, acerta sempre, se não queres perder.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

ideia

não faço a menor ideia das linhas das marés, nem dos corpos deitados na praia nestas tardes de outono - era ainda um passo curto, torto, o homem correndo na hora do almoço - e não quero que me chames em todos os momentos em que quero que me chames - para quê insistir no intratável insucesso das nossas metades desalinhadas -, mas ainda me lembro bem de como os olhares se cruzam mesmo nas noites mais escuras, como me lembro do poder das palavras quando soltas sem sentido. de resto, de nada mais faço a menor ideia.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

espelho

despeja o saco sobre a cama, a cama sobre o quarto, o quarto sobre o chão - enterrado na areia. despeja a boca sobre a mesa, a mesa sobre as pernas, as pernas sobre o infinito - desaparece. despeja a cabeça sobre ombros, os ombros sobre o tronco, o tronco sobre o terreno - preso na lama. despeja as sensações, as emoções, as razões, a falta delas - faz-te, finalmente, invisível.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

vazio

de tanto soletrar a mesma palavra, fatigou-se o coração de alimentar o pensamento - porque as palavras dispõem de uma universalidade que não espera, não nascem individuais nem solteiras, casam-se com as palavras dos outros, num contínuo. fatigou-se o coração de alimentar o pensamento, caiu da cadeira a pose e a amizade - pois se bem fazemos uso do que nos apraz, melhor deveria ser a nossa forma de acariciar o invisível, não vá a nossa linearidade provocar a queda do céu nas nossas cabeças. caiu da cadeira a pose e a amizade, de tanto soletrar a mesma palavra - fica na memória e nos bolsos a pedra que escolho não atirar, que escolho ou que me impeço, vá lá eu saber, que tudo agora é depois da nossa morte.

sábado, 25 de setembro de 2010

sábado

seja o sábado sagrado e corrompam as vestes todos aqueles que se atrevam a passar para lá do rio que corre às portas da cidade. seja o sábado sagrado, a voz pesada do pároco repete, pela matinada. aquele a quem se chama o povo passa, de cabeça baixa, esperando que a chuva o baptize neste inferno. acaso haverá alguém sabedor das periferias do desejo? acaso somos nós os responsáveis das tristes sinas em que mergulhamos? seja o sábado sagrado e facilmente identificável quem se amarre no pecado -  que traga nos pés a lama, na cara a vermelhidão, na boca o amargo. seja o sábado sagrado, a voz pesada ecoando nas cabeças. pela matinada, aquele a quem se chama povo passa, engole em seco, depois de bem esfregados os sapatos nas ervas daninhas do adro. não vá o acaso encontrar, no simples desleixo, frutuoso caminho para a mesquinhez dos outros.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

acordar

agora não vou acordar outra vez como se nada tivesse acontecido, o meu programa matinal foi adiado e substituído por música de elevador - talvez se possa, então, começar a fazer as coisas como elas devem ser feitas: carregar os instrumentos de tortura para cima das mesas, chamar os inocentes para a degola, enganar, uma vez mais, as deficientes patrulhas policiais. quando se altera o acordar é todo um outro sono que se inicia, com ele virão diferentes formas de descansar o corpo nos colchões, de respirar a lentidão da noite escura - talvez seja necessário, assim, começar a fazer as coisas como elas desejariam ser feitas: rasgar os músculos com a força de braços devida, arrancar, um a um, os mais longos cabelos, subestimar, uma vez que seja, a límpida estupidez dos animais.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

passeio

nunca me viste fora da carapaça, não sabes ler a textura dos meus ossos - as coisas arrumadas na prateleira da sala, arquivo futuro de uma guerra invisível, ter outra vez dezasseis anos e ser o idiota do liceu - e na textura dos meus ossos poderias encontrar a solução para todos os problemas do mundo, ou, pelo menos, para os problemas que o mundo te traz - a chave de casa perdida na rua principal, um telefonema de um número desconhecido, as coisas pequeninas em que decidimos acreditar - e tu não queres perceber que o mundo se resolve atravessando a estrada, por muito trânsito ou fogo que ela tenha, atravessa-se a estrada, queima-se a ponta dos cabelos e ficamos do outro lado, prontos a encontrar o que de novo vier - um qualquer amor de ocasião, uma folha em branco, o medo todo do zero naquele passeio.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

tocar

o espelho partido e não te vês, nem sentem os dedos decepados pelo vidro, agora, vais tocar o quê? o espelho partido e a imagem perdida, querer e querer procurar a imagem do teu choro. os dedos decepados e as sensações na distância, nem a pele nem as lágrimas têm a textura desejada. agora, agora, vais tocar o quê?

terça-feira, 21 de setembro de 2010

morte

era capaz de dizer a limpeza, mas bateram à porta e eu abri e era a morte. a morte anunciada, a morte. conhecemos as pessoas jovens e plenas de energia, até que um dia uma tosse, uma rouquidão, depois um lenço, depois um andar mais lento, depois uma conversa, uma notícia, uma ausência prolongada, depois, bem, depois batem à porta e era a morte. logo hoje que eu seria capaz de dizer a limpeza, logo hoje, a morte. a morte chegou e tratou da burocracia. alinhou as datas da agenda, manteve-se fria perante o anunciado, planeou, como se nada fosse. a morte, quando repetida, é mais leve, talvez, digo eu, penso eu, não estou seguro. pois bem, era a morte, a morte a tratar dos seus assuntos. e na minha cara, entre a tristeza, o medo de não saber o que dizer. o que dirias tu se a morte te batesse à morte? a minha cara triste e assustada, a repetir murmúrios. e no último aperto de mão, a morte sorriu. sim, a morte sorriu.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

palavras

encontras as palavras no deserto? encontras as palavras no deserto. centenas de quilómetros de calor e erva seca, algumas árvores que se vão esquecendo do tempo. as estradas feitas linha sobre os montes, as pessoas paradas, as portas de todas as casas fechadas. encontras as palavras no deserto? não se chega a estar sozinho no meio de tão brutal cenário, embora as vozes se apaguem lentamente com o sol a pino. ainda assim, com os dedos vais misturando a terra húmida com a seca, como se escavasses, como se fosse realmente possível encontrar as palavras no deserto.

sábado, 18 de setembro de 2010

doença

não é a semana que ficou suja, não. a palavra é que ficou doente. amadurecem, assim, os dias do descanso desejado. pretendes inventar uma biografia onde o mundo esteja sujeito a um interruptor. mas, tu sabes, não funciona. vais continuar a regressar, sempre, ao lugar onde foste infeliz. vais tentar não perceber o que encontras, acreditando que te querem continuar a magoar. vais repetir e repetir, choros e queixas, afundando-te sem saída. não é a semana que ficou suja, a palavra é que ficou doente. amadurecem, assim, os dias do descanso desejado.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

memória

uma manhã nisto, o chão sujo, as paredes envelhecidas e as palavras em repetição até ao infinito. uma manhã nisto, água a ferver até que a panela seja labareda, algum sangue no sofá, o prepúcio rasgado, uma face de pânico enquanto as pernas, antes todas claridade doce, se transformam, lentamente, na podridão do sangue seco. uma manhã nisto, a fraqueza do corpo assim surpreendido, a fraqueza da mente que se observa perto da morte, apenas ferida. uma manhã nisto, quase hora do almoço, quase hora de inventar a limpeza. a memória, essa, será para sempre suja.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

temer

lamber as botas da companhia, provar o amargo sabor da lama, na pele marcado o peso bruto dos que espezinham, ignorar a solidão do ossos partidos. não vou voltar a ser violento como quem lamenta, não, nunca mais. lamber as botas da companhia, inusitado gesto de quem rasteja, ou rastejará ainda pelo infinito dos tempos. nasceu o sol ou choveu a tarde inteira, não me perguntes, não saberei nunca responder as temíveis questões de quem teme.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

vista

depende sempre do ponto-de-vista - o homem mais sujo pode ter, na pele, o mapa do tesouro, a palavra mais bonita pode parecer feia se dita em determinadas circunstâncias, o discurso ébrio tanto pode apaixonar como enojar - depende sempre do ponto-de-vista. sentes-te excitada ou insultada, apontada ou escolhida, amada ou ignorada. depende sempre do ponto-de-vista. arrancar os olhos ou o coração. és tu quem escolhe, afinal.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

tempo

olha só a quantidade de coisas que podem acontecer ao mesmo tempo  - tu e as tuas roupas sobre a cama, o corpo límpido e exageradamente sensual - a quantidade de coisas que podem acontecer ao mesmo tempo, encontrar um caminho para a frança, saber de fonte certa todos os segredos do mundo, poder correr livre pelas areias de todas as praias. olha só. lamber as feridas durante noites inteiras, ouvir o canto dos pássaros perdidos pelo quintal, elaborar sem avidez todas as sedes de todas as bocas do universo. vê. a quantidade de coisas que podem acontecer ao mesmo tempo.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

rasgão

rodeou a boca com um lenço sujo, apanhado do chão. penteou, com fragilidade, os cabelos, saliva entre os dedos para acalmar as fúrias da cama. tentou alinhar a roupa de encontro ao corpo, não foi capaz. mergulhou todos os sentidos na inconsciência da sua companheira. sim, tinha uma arma de fogo, ilegal licença para caçar. no quintal corriam coelhos, voavam perdizes. rodeou a boca com um lenço sujo, apanhado do chão. procurou a primeira loja da rua, entrou pela porta, disse mãos ao ar. era uma figura magra, conhecida por todos, os olhos mais assustados do que nunca. deram-lhe algumas moedas, as poucas notas da segunda-feira, uma sandes de manteiga. ele correu assustado até aos limites da cidade. arrancou o lenço e comeu, sofregamente, o pão. nunca mais ninguém soube por onde parava.

domingo, 12 de setembro de 2010

banquete

trabalha e trabalha o homem, nunca dorme. nos seus olhos uma faísca que atira sobre a morte.
era uma vez uma estrada, uma cassete, mobiliário de jardim a preços de promoção. o homem perdido entre as peças do supermercado, a consulta dos preços, a escassez de dinheiro. era uma vez uma chamada a meio da noite que ninguém atendeu. os olhares adormecidos enganando os ouvidos, crenças fúteis nas capacidades dos vizinhos. a minha opção nunca foi a construção de paredes entre nós. erigi palavras grandes como troncos de árvores centenárias. mas ao longe

trabalha e trabalha o homem, nunca dorme. nos seus olhos tudo é medo. desilusão.
o lugar para onde se dirige não conhece, ele não sabe. resiste apenas à confusão dos sentidos. baralha-se. está perdido.

sábado, 11 de setembro de 2010

glicínios

faz o meu texto durar - faz, faz, faz.
eu arranho lentamente a cabeça com que adormeço na almofada limpa. eu arranco os pêlos do nariz e sorrio na televisão que é o teu olhar intrometido. eu chamo quem não ouve. os gritos limpos, os passos abertos no corredor do prédio. envio-te mensagens que não dizem nada - não fala nunca o tamanho da palavra.
faz, faz o meu texto durar.
os olhos arrancados do urso de peluche, a penúria ignóbil deste almoço que ainda não mastiguei. os carros que aceleram sobre as passadeiras de peões. as palavras duras dentro de água quente. a faca de cozinha, o supermercado, a dor quotidiana. cortei-me a fazer a barba, cortei, e desconheço ainda todas as implicações deixadas pelo testamento dos mortos familiares.
por isso te peço, que dure, que dure - faz.
não sei ainda quantas vozes se poderão dedicar à límpida rispidez de polir as maçãs do rosto. nem será nunca enquadrada em mim a leve tentação de te retirar do embrulho em que te ofereceste. eu arranho lentamente a cabeça com que adormeço na almofada limpa, eu sou a máquina de lavar, o amaciador, o pára-choques. restos de mim descansam na auto-estrada, esta não é uma carta de despedida.
faz o meu texto durar.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

garrafa

olhou várias vezes a garrafa em cima da mesa. a garrafa em cima da mesa. perguntava-se a si próprio porque precisava, tantas vezes, de recorrer ao gesto de abraçar e provar o forte líquido que ali estava guardado. olhou várias vezes a garrafa. não precisava dela para falar, para respirar ou viver. não precisava dela como companhia, como ideal. não precisava dela para nada mais do que matar-se um pouco mais, a cada noite que passava. olhou várias vezes a garrafa. entornou o líquido no copo, encantou-se pelo brilho das luzes da sala, como se dançassem. bebeu, uma e outra vez, bebeu para que no fim tudo restasse vazio. a garrafa, sim, mas também ele. ele próprio. e o seu corpo.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

canção

aprende a dançar a nossa canção, aprende a dançar, um pé outro pé, aprende a dançar a nossa canção. aprende a dançar a nossa canção, é desnecessária a formatação, um olhar outro olhar, aprende a dançar a nossa canção. aprende a dançar a nossa canção, uma e outra volta, depois o refrão, aprende a dançar a nossa canção. aprende, aprende, não digas que não.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

estupidez

oh, ser jovem e estúpido, acreditar infinitamente nos poderes da magia silenciosa, deixar-te enrolar os pulsos em gaze fina, fugir da realidade dentro de garrafas de vinho barato. oh, ser jovem e estúpido, não acreditar nunca na cor dos teus olhos, não fazer ideia das chaves que se guardam dentro dos casacos de inverno, não poder, não poder ser nunca de um lugar onde se deve ter a primeira palavra. oh, infinitos oh's de desespero, ser jovem e estúpido, tão tão estúpido, tão mais estúpido quanto à distância se entende, finalmente, o gigantesco tamanho da nossa estupidez.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

pássaro

penso em sangue e digo, a alta voz, "sangue não". as pessoas à minha volta, no restaurante, olham-me de lado. fingem regressar aos seus bifes, aos pratos de bacalhau à brás, e eu suo, de olhos muito abertos. penso em sangue e oiço as conversas dos outros. falam das contas, das vidas dos filhos, dos quilos ganhos no verão. o restaurante está quase vazio e as pessoas parecem recear-me. penso em sangue, pago a conta, saio para a rua. a escola ainda vazia de crianças. acendo um cigarro, olho a brisa no topo das árvores. um pássaro doente parece querer tombar, entregar-se à morte mais que certa. paro um segundo, trago o fumo, penso em sangue. "sangue", digo em voz alta. mas o vírus não escorre. mata por dentro. ameaça. o pássaro, o pássaro que ficou para trás.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

sol

não vás esconder o sol dentro do mar bravio. lá fora as pessoas gritam a noite inteira, não deixando que o mar nos chegue aos ouvidos. inventamos passos no meio da vila, inauguramos os olhares de quem ainda há pouco acordou. não vás esconder o sol dentro do mar bravio, não vás esconder a vida, as sensações. lá fora pessoas gritam, mas entre as nuvens ainda é o calor que nos aconchega na sala. não vás esconder o sol. deixa que os olhos brilhem.

sábado, 4 de setembro de 2010

viagem

talvez a viagem, acontece que a chuva, ainda assim o cinema. remo sobre o asfalto a minha casa, desprotejo-me ao quilómetro, engulo um choro que não inventei. não peças, nunca mais me peças, seja o que for. talvez a viagem, a construção, a historiografia. ser capaz de registar todos os movimentos num só segundo. querer encontrar o que não tem poiso, o que não nasce. saber sempre das coisas erradas da vida, para tudo faltar as palavras, menos para o que não merece já ser dito. talvez, por fim, a viagem, mesmo que a chuva, o cinema, sempre. o asfalto feito rio ou mar, oceano. toda a leveza dos impulsos. o cheiro molhado. a salvação que não encontro.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

treme

sendo o corpo a entidade que treme, tudo o resto é multidão. não há olhares que meçam a possibilidade do choque, estamos tão bem escondidos, tão difíceis de identificar, tal como estamos expostos a todas as surpresas. caminhamos assim entre duas verdades, não encontrando qualquer conforto na proximidade assim conquistada. ainda assim, o corpo, sim, o corpo, é a entidade que treme. pequenos tremores de terra passam despercebidos em todo o mundo, a cada minuto que passa. o que não dizer dos tremores dos corpos. à volta, a multidão. a multidão comendo refeições rápidas, olhando os relógios, conversando dos empregos, dos problemas de sempre. a multidão com fato e vestido, uniformizados para as sessões laborais do reino. passamos despercebidos, tu e eu? passaram, quem sabe, ignorados, os nossos olhares. o corpo, esse, treme. o corpo treme. as palavras não explicam. as memórias não resolvem. o aparelho não regista. o corpo treme.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

precipício

diz-me a tua idade, dir-te-ei do teu precipício. em todos os  mundos, um lugar onde perder a pele. em cada habitação da alma, uma faca pronta a perfurar o peito. não, não busco sangue. diz-me só a tua idade. eu dir-te-ei dos pássaros que morreram na viagem. um carro a acelerar na estrada nacional, uma cabeça espreitando da janela. em cada recorte de jornal, um esquecimento que anula sorrisos. diz-me a tua idade. diz. ou então recomeço a contagem dos dias ao contrário, os lençóis da cama desfeitos pela ausência de corpos. ou então elimino todos os documentos da nossa existência, restabeleço a ordem anterior, improvável citação do desaparecimento. ou então, ainda, o teu precipício feito em mim. a um passo de lá, um passo dado.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

dança

se queres dançar, porque não queres dançar? o computador lento a correr o anti-vírus, o calor pesado como as coisas que te caem sobre a cabeça, a cabeça por dentro, melhor nem falar. se queres dançar, escolhes a música, deixas-te ir. se não queres dançar, o mundo quase que pára. o computador lento a correr páginas e páginas, o calor pesado das coisas, bem, falo? o mergulho é um mergulho, havia água e areia por todo o lado, as palavras debaixo do chapéu de sol. não foram férias, foi um passeio pelo inferno imaginado. se queres dançar, se quero dançar, porque não queres dançar, porque não quero dançar? entre tudo isso e isto, onde agora estou, pouca é a fronteira.e não, eu não falo. deixo tudo por dizer, assim espalhado, em cima da secretária. faz o favor de ler os meus sinais. faz-me esse favor.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

talvez descansar

não interessa de sobremaneira o futuro, desde que eu saiba que não vou parar. o passado é apenas importante na medida em que deixa um rasto ao qual posso, sempre, voltar. o que vou fazer a seguir, não sei. talvez descansar.

como

também começas a sentir que o importante não será estar sempre onde é preciso. algures a falta é também uma sensação que nos completa. começas a sentir que nem tudo o é feito para ser visto ou lido. começas a perceber como as coisas, realmente, funcionam. e não, não é desejo de resguardo. é como as coisas são.

aprendes

aprendes a reduzir a felicidade às coisas que consegues segurar entre dois dedos. e entre dois dedos cabem mundos inteiros. aprendes a reduzir as causas da felicidade, as suas consequências são impossíveis de medir. aprendes a fazer isso e a sorrir, em seguida, sorrir, sempre. aprendes.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

vou por aí

então eu vou por aí, vou andar pelas linhas que saírem de meus olhos, e espero encontrar, sei que vou encontrar, esse sorriso, esse abraço, esse carinho, essas coisas todas que têm muito mais que ver com um gostar verdadeiro do que com um gostar interesseiro. talvez o homem que queira ser luís filipe cristóvão, não queira mesmo ser luís filipe cristóvão. talvez fique satisfeito por ser qualquer coisa de outra, qualquer coisa que ele já é, mas que só alguns poucos o percebem como possível de alcançar. então eu vou por aí. nem tanto a procurar, como disponível para ser encontrado.

história

pois todos os caminhos cruzaram as mesmas personagens, tentando fazer perceber ao mais escondido dos homens toda a filosofia da humanidade. pois também todas as línguas se conjugaram para esse encontro, onde os perdidos chegados das diferentes direcções souberam bem o que dizer para se apresentar. já aqui estou há tanto tempo e talvez ainda nada tenha dito de mim. agora o percebo. agora.

desejo

hei-de aprender a falar como a terra, aprender a sentir como as árvores, hei-de saber qual a minha casca, o lugar onde o chão me faz sentir casa. eu hei-de aprender tudo isso, mais um sorriso e um abraço de um amigo. um dia, sim, um dia assim será.

terça-feira, 27 de julho de 2010

photo-finish

ao calor elas correm, parece que vão paradas, pequenos corpos vistos assim, à distância, ao calor que nos estrangula, as pernas que vão suadas, elas correm e saltam e correm, pequenos pontos na miopia transfigurados, faz-se a curva, mede-se a distância, mas é a ordem dos saltos que aponta, vai atrasada, já não ganha, não se apura, ao calor elas correm, parece que vão paradas, sobre a meta, num photo-finish preparado com quatrocentos metros de antecedência.

martelo

vai o martelo no ar e já se encolhe a vizinhança, de altura assustadora, cai o martelo na erva, marca o ponto, aponta a marca, vai o martelo no ar e já se enruga o sobrolho, estende-se o corpo na gaiola, pisa-se a linha delimitada, é ponto nulo, é nula a tentativa, vai o martelo no ar e sabes que não há saída.

sapatilhas

acordo ponderando em fabulosas sapatilhas. madrugada e já os homens correm e suam, já as mulheres se preparam, já os juízes ajuizaram, já os passantes aplaudiram, já os câmeras filmaram, já as televisões transmitiram, as rádios ecoaram, e eu apenas acordo, acordo ponderando em fabulosas sapatilhas, descendo à rua, entrando na pista, saudado por todos, cortando a meta.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

grito mudo

o grito não ecoou pela cidade, estavam todos a dormir, até a mão que agride, até o corpo que sofreu. o grito não ecoou pela cidade, não chegou a começar. mas tu acordaste, suada, assustada. tu acordaste. o grito não ecoou pela cidade, ninguém o ouviu. amanheceu um corpo sem vida no canto mais escuro da cidade.

não mais

não mais a boca seca de manhã, a cabeça pesada, os pés trocados, em corrida/queda pelo corredor. não mais o transtorno do cigarro a morrer nos lábios, a palavra trespassada, o esquecimento do pormenor nocturno. não mais os óculos partidos, a testa esfolada. não mais isso. não mais.

explicação

prefiro acreditar que tudo tem uma explicação. este sol forte que nos toma os pensamentos, a travagem mal calculada que fez um carro se despistar esta manhã, a ausência de palavras vindas da tua boca, os olhares em fuga das pessoas da rua, a bola rematada contra o poste no jogo de ontem. prefiro acreditar que tudo tem explicação. persegui-la pelos dias, em cada recanto. mesmo que nunca a encontre. mesmo assim.

sábado, 24 de julho de 2010

réplica

mas um lugar funciona hoje como exegese da possibilidade teatral. a câmera. milhares de homens e mulheres descansam em pequenos habitáculos interiores aos espaços comerciais, assistindo continuamente à repetição do real, captado através das câmeras de vigilância. em algumas zonas, experimenta-se já o mesmo efeito nas ruas, e onde ainda falta o som, esmerados criadores tentam recriar diálogos que assentem sobre as imagens recolhidas em tempo real. mas não, não faltará muito para que até as nossas conversas possam ser captadas, as conversas de rua, de telefone, as conversas connosco próprios. e então chegaremos à réplica perfeita do acontecimento que é as nossas vidas. e então perceberemos que não era disso que andávamos à procura.

teatro

o dilema do autor dramático é o encontrar de linguagens próprias para cada personagem. no entanto, o autor dramático é, já, uma simulação dessas deslocações. sentado à sua secretária, imagina redutos onde ninguém pode entrar, falsificando, à partida, toda a geometria dos afectos que se prentende natural. depois, imagina um palco onde haveria uma sala, um sistema de iluminação onde se quer apenas um candeeiro, um guarda-roupa onde as pessoas só se deveriam vestir com a sua roupa de cada dia. o dilema do autor dramático é não ser deus. e, para além disso, ter pouco tempo a perder até que possa descansar sobre a obra feita. há quem leve milhares de anos de avanço nas experimentações. e, ainda assim, a plateia queixa-se.

sem drama

não, não será necessário aguardar o ambiente propício ao nosso encontro, podemos simplesmente sair de casa e sentarmo-nos num café próximo, pedir distraídamente dois sumos de laranja e desatar as línguas numa daquelas conversas fúteis que enchem as telenovelas de todas as televisões. e não, também não será necessário corromper os nossos olhos com toda a filosofia da europa antes de tomarmos alguma decisão ética sobre a possibilidade de duas pessoas (neste caso, tu e eu) poderem fazer a sua vida sem ter que estar, constantemente a pedir autorização para cada gesto que façamos. deixemos as coisas serem como são, simples, seguindo-se umas às outras. sem dramas, sem qualquer tipo de dramas.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

fenda

e porque o meu peito é uma fenda aberta onde eu tento não cair, coloco, junto à berma, um aviso à navegação. sentado numa cadeira de lona, vejo os carros que chegam, um atrás do outro, descendo as montanhas que me rodeiam. numa mão um cigarro, na outra um livro, espero que o tempo componha a sua aproximação. e porque o meu peito é uma fenda aberta onde eu tento não cair, preocupo-me ainda com as quedas dos outros. sentado numa cadeira de lona, ninguém diria que, daqui, vejo o mundo em toda a sua grandeza e fealdade. numa mão a caneta, na outra o telemóvel, quem me ligará quando sou eu o fim da estrada? o meu peito é uma fenda aberta onde eu tento não cair. repito muitas vezes esta frase no silêncio. e quando me levanto, vou pé ante pé, seja qual for o destino.

pôr-do-sol

o pão já está sobre a mesa, a sala ainda vazia, apenas a brisa que corre entre janelas, apenas a sensação de ser verão, o pão sobre a mesa, um chuveiro a correr, o biquíni pendurado na corda da varanda, os meus pés descalços, a porta, o pão sobre a mesa, uma música bem baixa, os risos das crianças lá fora, o regresso da praia, a noite que chega, o pão sobre a mesa, o pão sobre a mesa, os teus cabelos molhados.

precipício

não digas nada, deixa apenas que o dedo indicador percorra as tuas costas até ao precipício do mundo, deixa apenas que o sorriso te cresça no canto dos lábios, que os olhos te brilhem, não digas nada, tenta apenas sentir, tenta deixar que as coisas simples tomem conta dos teus sonhos, da tua respiração, e depois, sim, depois grita e voa, salta comigo em direcção ao mar.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

plano

o meu plano actual é ouvir andrew bird até que me cresçam asas. o meu plano seguinte é aprender a recortar penas. o meu desejo é saber a cor com que me crescerão as asas. se podem ser bem claras, como o sol desta manhã. ou se serão escuras como a gravidade do momento. o meu plano actual é uma conspiração de homens calados. o meu plano seguinte é uma entrada de rompante no concerto da banda filarmónica da cidade. o meu desejo é saber onde começa o timbre que me invade os ouvidos. se um alarme despertador me foi inserido no cérebro ou apenas no pensamento. o meu plano actual é isto.

palavra

eu, que já corri quilómetros, percebo que nem todas as línguas têm suficientes palavras para enquadrar o nosso pensamento. e sei ainda que algumas das palavras certas são, na verdade, deliberadamente mal representadas em sons ou ritmos, de maneira a que nos surjam falsas. eu não gosto de palavras, muito menos das certas. mesmo agora que percebo que nem todas as línguas serão suficientes para expressar o que vou sentindo, não gosto mesmo nada das palavras certas. porque a um ligeiro contentamento de acertar, segue-se o silêncio de não haver mais nada a dizer. eu, que já corri quilómetros, vou continuar a procurar. sem vontade alguma de encontrar. 

calças

não passes a tua mão no meu bolso das calças. talvez eu tenha esquecido por lá umas últimas moedas, ou mesmo a vida. e sabes, encontrar uma vida assim, amarrotada na cadeira do canto do quarto, talvez não seja mesmo a melhor forma de enfrentar. não passes, então, a tua mão no meu bolso das calças. deixa-me que as lave, que as estenda na varanda, espera que venha um sol que as seque. algum dia eu serei um rapaz de calças novas e lavadas. algum dia estarei, sim, à tua mão.

adolescente

esta noite vamos beber às palavras que se repetem sem sentido. e talvez possamos, também, falar sobre a vida e as gaivotas. esta noite vamos beber até que os pés fiquem dormentes, conquistar o mundo na hora da maré vazia. esta noite vamos inaugurar os sentidos escassos do álcool, repetir a mesma saída de sempre. tão pequenos e tão fúteis nos fizemos. tão carentes de significado e de verão. esta noite, na praia.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

explosão

"estás preparado para a guerra", diz ela, e as armas aparecem-me nas mãos, cerro os dentes, fecho os olhos. "estás preparado para a guerra", diz ela, mas não saio eu a correr de fronte ao inimigo, não deixo que a motivação me oculte o raciocínio. o meu passo é recatado e silencioso. a minha arma é a explosão no centro da atenção dos mundos. não sou um terrorista. sou uma evidência, estive sempre aqui para ser apontado. mas agora, agora que estou preparado para a guerra, sou explosão.

sprint

já quase adormeces quando toca a campainha. já quase não existes quando te chamam a intervir. poucas palavras dizes, nada tens para oferecer. o teu ser é uma recordação distante, materializada em virilidade ocasional. já quase adormeces quando se desperta a mente. último sprint de uma etapa qualquer da volta à frança. último sprint e a limpeza de um coração feito de rectas. já quase adormeces e acabas, mesmo, por adormecer.

gesto

prevês o gesto mas não prevês a consequência. assim coordenas o espaço entre os dedos e a consciência. resguardas-te no silêncio, mas todo o teu coração é ruído. tremes ao ouvir o barulho das casas que compõem o prédio onde vives. prevês o gesto, adivinhas a voz. não compreendes as palavras, apenas as sensações. homem agride mulher, é uma velha história sem humanidade nenhuma. e refazes agora todos os sorrisos e palavras amigáveis que trocaste, a subir ou descer escadas. refazes agora o plano sobre as impressões, quando eram também impressões o que te fizera sentir positivo. prevês o gesto mas não prevês a consequência. quantos mais dias à espera do último ruído rasgando o sono?

terça-feira, 20 de julho de 2010

um recomeço

para poder recomeçar, deixemos as mãos segurando os lençóis e voemos, de braços bem abertos, por cima das casas, das casas, das casas. para poder recomeçar, temos também que aprender que as palavras, assim como as conhecemos, chegaram agora ao fim da sua vida, preparando-se afincadamente para rejuvenescer em novos significados. para poder recomeçar, como se fosse um refrão, vejam só, ensinemos os pés a reconhecer as calçadas, mas também a areia, a terra, a poeira dos caminhos. depois, de braços bem abertos, desenhemos os telhados nas folhas brancas de papel, inventemos a pequena glória dos nossos sonhos, tratemos de tratar de todos os assuntos da benevolência. aí será, se não me engano, o lugar, o lugar para poder recomeçar.

de olhos fechados

aprendi, de olhos fechados, a caminhar na casa, e logo fiz da casa algo bem maior, um mundo, e então o meu mundo percorria-se de olhos fechados, em segurança. aprendi, de olhos fechados, a percorrer o teu corpo, e logo fiz do teu corpo algo bem maior, uma existência, e então a minha existência era o teu corpo, em aconchego. aprendi, também, os pesos e os sabores dos beijos, os lugares e as exaltações dos dedos, o calor resguardo entre as coxas. de olhos fechados, tudo agora me é tão claro. de olhos fechados.

dos campos

o que se pode apreender da observação dos campos, em resumo, é o lugar onde colocar os pés, a maneira de o percorrer, a existência efémera das possibilidades. pode-se ainda reter os cheiros, as barreiras, as ilusões. o que se pode apreender da observação dos campos, é uma linha fina que se vai criando sobre as ervas ou o trigo que neles crescem. também as vozes, longínquas, de algumas pessoas. um ou outro olhar. a infinitude.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

armadilha

no fundo, gastas as palavras até que nada fique por escrever. gastas-te a ti próprio, até que todos se sintam cheios de ti. gastas as oportunidades, as possibilidades de fuga. a prisão onde te encontras é a mesma prisão a que condenas o resto do mundo. é essa a equação mais complicada de resolver. estás na tua própria armadilha. e não há quem te encontre ou salve. fosse para te deixar ir, fosse para te dar a estocada final.

a ofensa

uma boa maneira de não ter descanso é encontrar um livro que nos retire do lugar. um livro onde tudo faça sentido apenas dentro dele. um livro que se nos oferece como um enigma, uma bomba-relógio, pronta a explodir dentro da nossa própria cabeça. uma boa maneira de ficar magoado com o mundo que temos é entrar num mundo que inventamos. ter que encontrar o sentido para algo a que nunca havíamos sido expostos. ter que perceber qual a verdadeira ofensa d' a ofensa, de ricardo menéndez salmón. passar dias inteiros nisto. ficar para a vida.

al-biynman

na ilha de al-biynman, para casar, era preciso cortar a cabeça de um homem. o noivo recebia a mão da noiva contra a entrega da cabeça de um homem em casa do pai dela. na ilha de al-biynman, quantas mais cabeças de homens cortasses, mais vezes poderias casar. tanto poderias ser um macho sanguinário como um homem apaixonado. nenhum homem poderia ser amigo de um outro, quem quisesse ajudar ao amigo a casar, poderia ter que oferecer a sua própria cabeça. na ilha de al-biynman, os homens rareavam. os mais fortes, os de maior prole, eram também os mais paranóicos, doentes e violentos. a ilha de al-biynman acabaria por desaparecer de todos os mapas, de todas as memórias de cabeças cortadas. depressa se chegou ao ponto de cortar a cabeça do pai, do tio, dos irmãos. é para lá que caminhamos. é para lá que caminhamos ainda.

conflitos

não é cabeça cansada, é recolha de informação. não é falta de paciência, é afinação do sistema. não é mau humor, é persistência. não é má criação, é sinceridade. não é que não te queira falar, é não ter nada para te dizer. não é que não queira oferecer-te um poema, mas custa-me responder a encomendas. não é que eu não saiba cantar, é a voz que não quer sair. não é que eu me tenha esquecido, apenas não era ainda o tempo. não é que seja fácil, mas andando lá chegaremos. não é nada como tu queres, nem nada como eu quereria. é como tem que ser. como tem que ser.

processo

a solução é evitar as grandes decisões, os anúncios, as promessas, tudo. a solução é evitares as discussões, argumentos, análises ou grandes conversas sobre os "grandes temas da literatura" (sic). a solução é fugir pelos campos, pés descalços, ou então embrulhares-te na areia quando ainda, sobre a praia, tudo é névoa e falta de humanidade. é mais fácil ser-se humano quando se está sozinho, disso não duvido. mas eu nunca estou. nunca, nunca estou. sou processo de desaprendizagem em movimento.

prisão

não é fácil encarares, diariamente, as tuas próprias falhas no caminho que vais fazendo. mas também não é fácil assumires, por alguns dias de trabalho, a tua vontade de deixar de fazer o que te provoca essa coceira em todo o corpo. não estás a dizer verdade nenhuma, tu sabes, a mentira é a tua forma de ir construindo a vida que os outros pensas que tens. mas, no entanto, o que vais desenhando é um reduto onde é cada vez mais difícil entrar. não é fácil encarares o facto de estares isolado, de ninguém querer saber, de poucos perceberem como se visita esta vida que começa a ser peça de museu. para tudo e todos, és ilusão que conversa ou respira. não está fácil, não, não está mesmo. o corpo ajustando-se à pequenez da prisão onde o guardas, a alma muito maior que tudo aquilo que possa um dia vir a ser descrito. tu percebes. mas não sabes como o contar.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

saber

não há melhor poesia que um corpo satisfeito, seguro de si. não há melhor poesia que um coração aconchegado. não há melhor poesia que o olhar da pessoa certa, a sua segurança nos nossos braços. não há melhor poesia que a ausência de palavras, o saber tudo o que é dito, sem necessidade de articulação.

criar

agora já podemos criar novas palavras para os sentimentos que não temos como explicar. o certo é que, ao fim de algum tempo, as palavras nascem-nos na boca, palavras do tamanho de corpos inteiros, com ares de poesia e carinhos a substituir as arestas. agora já podemos criar mesmo aquilo que quisermos. e sorrir o dia inteiro a pensar nisso.

história

não se trata de qualquer segredo. é apenas o vento que continua a soprar para dentro das nossas cabeças. é apenas aquele lugar, no alto da arriba, que nos permite olhar todo o mar. não se trata de qualquer invenção, qualquer novidade. foi sempre assim que as coisas foram. melhor ou pior contadas por aqueles que vieram antes de nós. sempre assim.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

ritmo

como treinar a mão para um ritmo onde a lágrima se desfaz sempre em riso inteiro e os pés não conhecem nada mais do que a generosidade da terra que os beija, ora aí está onde eu mergulho sem me encontrar maneira de respirar outra vez com pulmões plenos. como treinar ou reconhecer, quero dizer, como saber fazer-me dessa cor, desse jeito, sem perder, ainda assim, o rastro que é agora toda a minha pele e o meu ser. queria ser capaz de fazer as perguntas, mais do que encontrar as respostas, mas está tudo tão longe (ou perto demais), está tudo tão longe de ser, por um momento que seja, passível de ser meu. confundo-me sem me reter na ilusória capacidade de usar as palavras - o segredo é continuar. mesmo sem qualquer pontuação com que me salvar. 

adormecer

agora é hora de adormecer deste lado do verão, onde o rumor do mar se mistura com as vozes dos adolescentes que correm as ruas em busca de qualquer coisa que eles ainda não sabem que nunca vão encontrar. adormecer onde o calor nos toma os corpos despidos e, na boca, as palavras vão perdendo força, ficando gemidos, de um prazer redescoberto no aconchego do abraço. agora é essa hora. já apaguei a luz.

melhor

melhor mesmo é dizer não à viagem. ficar por aqui, ficar por casa. deixar que seja a areia a arrebatar-nos os passos, a prender-nos as pernas, a isolar-nos do mundo. melhor mesmo é dizer não à estrada. ficar pelos curtos caminhos do conhecido, ser beijado pela comoção do próximo. melhor mesmo, é tudo isso, pequeno e resguardado, quieto e inútil.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

opção

há um ditado comum onde desejamos, aos outros, aquilo que eles nos fizeram a nós. desejamos que os outros sofram do mesmo mal, padeçam das mesmas agonias, das mesmas dores, das mesmas ansiedades. mas não estamos seguros de que isso garanta a aprendizagem a alguém. perante a repetição de um acto, todas as reacções são possíveis, todas elas dependem de um muito maior quadro individual. e então pensamos que, perante esse mal semelhante na vida de um outro, esse outro decidiu praticá-lo sobre nós. percebemos que se trata apenas de um círculo vicioso que agora cobre a nossa rua, a nossa porta, a nossa casa. percebemos que, a determinado momento, a opção vai ser entre participar ou sofrer. e sabemos todos que o sofrimento nunca é a opção vencedora.

psicologia

é a psicologia das coisas comuns. um pequeno evento aleatório que se torna repetitivo, ganha um peso exagerado no nosso quotidiano. passamos a acreditar em coisas que não acreditávamos antes. passamos a temer, a odiar. é a psicologia das coisas comuns. o mal que nos pode tocar a todos. concentrar em nós uma energia que acabará por ser descarregada em alguém, de uma forma brutal e inesperada. e mesmo que não o queiras, sabes que não o poderás evitar.

arrombamento

daquele número de telefone só podem vir más notícias. pela terceira ou quarta vez. o mesmo número de telefone. as mesmas más notícias. sobre os ombros o peso de, uma e outra vez, ver a porta deitada abaixo, o nosso espaço invadido. o mesmo número de telefone. quem sabe, a mesma ideia estúpida, de insistir em partir portas para não ganhar nada. luto contra o sabor amargo que me cresce na boca, que ameaça fazer sair uma palavra, uma frase mais violenta, mais chocante, para quem nunca sentiu o mesmo. pela terceira ou quarta vez.

terça-feira, 13 de julho de 2010

puxa

puxa a camisa, puxa o cabelo, quantas sílabas tens nos lábios no momento de sentir? não sou mais bússola de nenhuma leitura, remendo de qualquer história passada. puxa pelo braço, puxa pela ideia. e os armistícios da mente, quando serão assinados? não sou mais requebro de uma dança, passo de uma caminhada sem destino. abre os lábios, inventa a tinta. marcamos encontro no futuro das nossas imaginações.

leva

levo os pés pela areia, levo-os ao cheiro do mar. de mim eu pouco sei, ou nada. apenas aprendo pela forma das coisas que encontro. levo os pés pela areia, levo-os bem perto do mar. o meu ritmo é o ritmo do nascimento dos dias, da respiração das noites. pouco sei do que possa ser repetido nos salões da tua imaginação. sei que vou, sei que vou. e levo os pés pela areia, levo-os para dentro do mar. quem souber de mim, lerá as pegadas que deixo em registo até ao momento em que a maré encher. até aí.

arrasta

arrasta os teus cabelos pelo meu peito, respira devagar a brisa quente que entra pela janela da sala. arrasta os teus cabelos pelo meu peito, a minha mão desliza devagar pela tua pele, conquistando um território indiviso. por estes caminhos reinamos os dois, e isso está expresso nos sorrisos que trocamos, nos beijos que nos oferecemos. arrasta, uma vez mais, esta noite, os teus cabelos pelo meu peito. uma vez mais.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

cinco anos

estava aqui mesmo onde estou agora, faz hoje cinco anos. havia mais livros pelas prateleiras, uma expectativa bem ansiosa no peito. ao fim de uma série de meses, finalmente, teríamos a porta aberta para receber os nossos amigos, os antigos e os que se começaram a fazer nesse momento. faz hoje cinco anos, nascia também uma revista por onde haveriam de passar muitos nomes, muitas letras, muita gente. há cinco anos estava tudo, apenas a começar.
não sabíamos bem por onde íamos. mas não nos passaria pela ideia crescer o que crescemos, fazer o que fazemos. as coisas foram, no entanto, tomando o seu rumo natural. vendemos os primeiros livros, aprendemos melhor como se transforma uma livraria numa coisa da qual se vive, editámos, criámos novos projectos culturais para várias cidades, um projecto de turismo cultural, crescemos muito no espaço e na internet, passámos a ser reconhecidos.
não sei explicar melhor as coisas que me foram acontecendo. as conversas que tive, as pessoas que conheci, os livros que vi sair da gráfica, transformados de ideias em coisas de papel. não sei explicar melhor como se cresce enquanto homem, com a possibilidade de tocar e sentir tanta gente e tanta ideia à nossa volta. como nos tornamos diferentes e percebemos coisas que nos eram estranhas anteriormente. também não sei como explicar melhor as dores e os choros que cinco anos nos provocam.
estava aqui mesmo onde estou agora, faz hoje cinco anos. mais daqui a pouco estarei lá em baixo, a apresentar mais uma revista (a sexta), a festejar mais um ano que se completa. cinco anos passam muito depressa quando não paramos para pensar neles. os cinco anos são assim. quase nos fazem esquecer o momento em que abrimos a porta, aquilo que sentimos nesse dia. mas faz hoje cinco anos. e eu só sei que vamos continuar por aqui.

foi

foi um grande mundial de futebol. com grandes equipas a dominar a competição, com grandes jogadores em afirmação, com jogos disputados e momentos trágicos. foi um grande mundial de futebol. tivemos a sorte de ver casillas, puyol, fábio coentrão, khedira, schweinsteiger, arevalo rios, thomas muller, xavi, iniesta, sneidjer, robben, klose, villa, forlán, suarez. muitos destes nomes e destes momentos serão recordados, daqui para a frente, milhares de vezes. podemos dizer que os vimos em directo. podemos dizer que os vivemos. foi, sem dúvida, um grande mundial de futebol.

desculpas

oiço os comentadores criticarem a dureza de van bommel e de jong contra os médios-ofensivos espanhóis. mas nem uma palavra sobre a impetuosidade de puyol, busquets e capdevilla. uma equipa que aposta no controlo de bola, na beleza da finta, tem sempre desculpa para que os seus jogadores menos habilidosos possam castigar os adversários. quem aposta num jogo de linhas rectas, não.

oportunidade

a holanda poderia ter ganho este jogo se, numa das oportunidades flagrantes (duas para robben, duas para mathijsen), tivesse marcado golo. poderia até ter goleado. mas os deuses do futebol estiveram com a espanha. dizemos, agora, que temos um campeão justo. mas o futebol nunca foi um campo de justiça. é apenas o terreno onde ganha que aproveita as oportunidades. nada mais.

espaço

uma equipa que procura, durante 120 minutos, um espaço, acaba por encontrá-lo. iniesta marcou o golo. a espanha é a justa campeã.

sábado, 10 de julho de 2010

o último minuto

oxalá que todos os últimos minutos venham a ter um livre à entrada da grande área. para que o final seja grande, trágico, sentido. oxalá que todos os últimos minutos se façam assim, com um remate à trave, ao lado ou na rede. oxalá.

o futebol

não esquecer, meus amigos, o futebol. o futebol sem qualquer outro objectivo que a parca honra. um terceiro lugar que não salva nada (será que existem, sequer, medalhas?). não esquecer, ainda assim, o futebol. as linhas direitas de uma alemanha cheia de jovens que é preciso rever, muitas vezes, nos próximos anos. os uruguaios cheios de raiva feliz e desespero concentrado. sim, amigos e amigas, o futebol. esse intervalo na vida, esse sossego filosófico. não esquecer, não esquecer.

anti-social

sim, ainda sabes sorrir para os outros, mas tão pouco. algures a tua paciência esgota-se ao mesmo ritmo que a caipirinha no copo. cumprimentas alguns conhecidos, trocas palavras de ocasião. sim, ainda sabes sorrir, mas de que te vale isso. a caipirinha vai do copo para o efeito, e a cabeça fica sem espaço para cedências. sim, sim, isso tudo, sorri e foge, enquanto é tempo. em casa sabes que podes ser anti-social à vontade.

o elogio do varredor de rua

voltar a ter cinco anos, voltar a querer ser um varredor de rua. no varrer, encontro toda a ciência concentrada. o gesto físico pré-determinado, a conjugação das partículas, a desobediência dos ventos. no varrer, toda a poesia do trabalho repetido e sempre inacabado (pois é impossível varrer tudo de uma vez). voltar a ter cinco anos, voltar a querer ser um varredor de rua.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

o jogo escolhido

a holanda e a espanha são as melhores equipas, as equipas que são superiores nos jogos mais difíceis. mas a alemanha mostrou, quase sempre, um futebol mais limpo e directo, em procura do golo. e o uruguai foi a equipa com mais raça deste mundial. desculpar-me-ão, então, aquilo que vos confesso: tenho mais vontade de ver o jogo do terceiro e quarto lugar do que a final deste mundial. é claro, verei os dois. mas se tivesse que escolher um jogo para o próximo fim-de-semana, seria uruguai-alemanha. vai ser espectáculo.

bênção e condenação

digam o que disserem, a alemanha começou a perder este jogo quando thomas muller ficou excluído do jogo. um miúdo de vinte anos tem, neste momento, todo o jogo da equipa nas suas costas, já que ele é o primeiro avançado a defender, o médio que abre espaços para receber a bola, o homem que substitui todos os outros nas movimentações ofensivas da equipa. sem ele, a alemanha é uma equipa incompleta. trochowski só defendeu, kroos lutou para receber a bola mas não sabia o que fazer com ela. no banco, estava a terceira opção, marin, que seria exclusivamente o homem das movimentações ofensivas. ter um jogador como muller é uma bênção, mas também uma condenação. os alemães sabem-no melhor do que ninguém.

espanha

o jogo começa e os espanhóis guardam a bola. guardam a bola só para eles. durante longos noventa minutos, o jogo passa-se sempre nos pés dos espanhóis. que tentam passar e chutar por entre as pernas dos alemães. ingloriamente, o jogo acaba por ser conquistado nos céus, onde um pequeno espanhol conquista a bola entre as torres alemãs. abram alas, a espanha está, pela primeira vez, na final do mundial.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

a holanda

sim, sim, mas quem vai à final é a holanda. a holanda com o perfume de robben e sneijder. a holanda com a elegância de van persie. a holanda com a aspereza certeira de van bommel e de jong (que falhou a meia-final, mas volta no jogo decisivo). a holanda que sobrevive ao facto de ter uma defesa que entra em pânico sempre que tem que trocar a bola no seu meio-campo. essa holanda que, na segunda parte do desafio contra o uruguai, apenas precisou de dez minutos a alta velocidade para conquistar uma vantagem de dois golos. a holanda em quem nem os holandeses acreditavam. são eles que vão estar na final. eles mesmos.

galeano, outra vez

um campeonato do mundo nem sempre trata apenas de futebol. como aqueles que estiveram indecisos sobre quem apoiar, até ao momento em que se lembraram que eduardo galeano é o mais conhecido fanático por futebol do uruguai. a partir desse momento, não restaram quaisquer dúvidas.

poesia em campo

estava já o jogo em tempo de descontos, quando luís freitas lobo, a comentar para o canal 1 da rtp, diz esta frase: "estão três milhões e meio de uruguaios a tentar entrar na área da holanda". e as faces que já choravam a derrota, alegraram-se com a presença da poesia.

uruguaios

somos todos uruguaios. todos nós admiramos a raça e a capacidade de nunca desistir da equipa azul-celeste. somos todos uruguaios. todos queremos ter uma equipa que luta como nenhuma outra pela vitória. todos queremos um rios incansável a correr no meio-campo, um forlán a fazer brilhar cada bola que lhe passa pelos pés, um suárez que sonha o impossível. somos todos uruguaios. somos sim.

terça-feira, 6 de julho de 2010

pavé

seguem as camisolas coloridas pelo pavé, frança profunda a admirar as máquinas humanas sobre as bicicletas, seguem as camisolas coloridas, furam os pneus, trocam-se as ordens dos favoritos, frança profunda a chorar nas bermas das estradas, seguem as camisolas coloridas, seguem estrada fora.

praia

ficas parado na janela do teu escritório a vê-los partir para a praia. o calor derrete-te a testa em suor, o corpo torna-se pesado, lento, enquanto ficas a vê-los, aos outros, partir para a praia. o verão está aí, mesmo na tua rua, na rua que só usas para ir de casa para o trabalho, enquanto os outros partem para a praia.

amor

há já muito tempo que não escrevo poemas de amor e, penso, não será por amar menos. talvez o amor tenha deixado de fazer sentido nos poemas, talvez os poemas mais apaixonados são aqueles que são escritos sem saber, nem imaginar, que quem os lê pressente ali todo o amor do mundo.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

descalço

descalçar os sapatos é o momento de parar. o corpo pede, a cabeça deixa-se levar. descalçar os sapatos é recuperar a liberdade provisoriamente perdida. esticar as pernas. ensaiar o bocejo. descalçar os sapatos.

modo de exibição

certas pessoas insistem em viver em "modo de exibição", como as equipas que, fora da época de competição, se exibem perante o público admirador. no entanto, as pessoas exibicionistas, mais do que um grupo de fãs, estão rodeadas por um grupo de conhecidos que está já cansado delas. ainda assim, insistem no "modo de exibição", nunca entrando a sério na competição de serem boas pessoas, bons amigos, companheiros aceitáveis para tardes de domingo. insistem nas figuras. nas figuras que fazem, cada vez mais sozinhos. 

ser conhecido

por vezes, tentam-nos vender a ideia de que "ser conhecido" é uma fatalidade. por exemplo, quando nos dizem "mas eu conheço-te", (aquilo está muito bom "mas eu conheço-te"). fico a pensar se, dadas as circunstâncias de pré-existir um historial, nós deveríamos ser sempre bons ou sempre maus, como se a vida fosse uma linha direita e constante, onde não podemos ter melhores e piores momentos. como se isso fosse possível.

domingo, 4 de julho de 2010

razão e emoção

épico, um jogo de quartos-de-final onde num intervalo de cinco minutos existem duas grandes penalidades falhadas, uma para cada lado. épico, um jogo que se disputa, quase exclusivamente, entre as ideias dos seus treinadores, vicente del bosque na linha do que tem sido o futebol da espanha/barcelona nos últimos anos, gerardo martino a colocar em campo a nova tendência sul-americana de pressão a campo inteiro, misturando o que é um jogo irrespirável para o adversário e uma constante aposta na velocidade e no contra-ataque. épico, ainda, na forma como a espanha obtém o seu golo, criando um espaço que não tinha aparecido na defesa adversária e vendo a bola beijando as redes depois de três toques nos postes. épico, também, nas lágrimas revoltadas de cardoso, no fim do jogo. razão e emoção conjugadas no encontro entre espanha e paraguai. jogos em que acabamos por aprender, imenso, sobre a nossa própria vida.

geração alemanha

confesso que não era grande admirador de joachim low. nas suas equipas, apesar de haver uma ideia de futebol que parecia em construção, havia sempre um momento em que essa ideia esbarrava nos jogadores. não deixa, no entanto, de ser um momento de felicidade quando uma ideia encontra uma geração de jogadores capazes de a colocar em campo. com uma defesa com toda a segurança tradicional dos alemães, low baseia o seu jogo no duplo-volante khedira (mais defensor) e schweinsteiger (mais criador), a partir do qual uma linha com muller, ozil e podolski espalha velocidade e perfume, chegando ao ponto de fazer com que klose me pareça, finalmente, um bom ponta-de-lança, capaz de trocar posição e desequilibrar a defensiva adversária. temi, no início do campeonato, por esta equipa onde a juventude impera. mas esqueci-me de que são alemães. alemães felizes e contentes de jogar um futebol disciplinado e inspirado, coerente e ofensivo, romântico na forma de procurar espaços e concreto no momento da finalização. que grande equipa, esta alemanha. que grande equipa.

equipa contra deus

maradona voltará para casa vergado sob o peso de uma inequívoca derrota. na selecção argentina, não falhou nada daquilo em que maradona sempre apostou. a diferença, neste jogo, foi ter que defrontar uma equipa, uma verdadeira equipa. e isso, já se desconfiava, é demais até para um deus como diego armando maradona.

sábado, 3 de julho de 2010

momento

um grande jogo de campeonato do mundo é aquele que reserva um momento que ficará para sempre na história. o uruguai-gana será um desses jogos. minuto 120, exactamente o último do prolongamento. a equipa ganesa tenta desesperadamente o golo, conseguindo, no meio de vários ressaltos, fazer com que a bola se direccione para a baliza. aí, luís suarez, atacante em funções defensivas, atira as duas mãos à bola, evitando a eliminação automática do uruguai. penalti. gyan, marcador habitual das penalidades ganesas, falha o penalti e o gana acaba por ser eliminado no desempate por grandes penalidades. momentos de emoção extrema como estes são desejados por todos os adeptos no mundo (excepto por aqueles que seguem as equipas que estão em jogo). momentos de emoção extrema como estes nunca são esquecidos.

controlo da qualidade

até o melhor fruto pode ser atacado pelo bicho. os holandeses acreditaram nisso até ao fim, encontrando nas fragilidades do brasil a chave para as meias-finais. o controlo da qualidade do adversário é uma das melhores formas de conquistar vitórias no campo de futebol.

boas e más ideias

dunga, infelizmente para todos os brasileiros, é mais um claro exemplo de que, no futebol, as boas e as más ideias convivem, muitas vezes, nas mesmas opções. com a mesma estrutura em campo, o brasil foi, na primeira parte, um espremedor de laranjas que, na segunda parte, acabou espremido contra a sua linha de fundo, incapaz de responder aos ataques dos holandeses, sem soluções para mudar o rumo dos acontecimentos. pensar, no entanto, que o brasil será dos países do mundo onde o universo de escolha é maior, leva-nos a pensar se mesmo as melhores ideias não precisam de opções seguras no banco. não haver extremos velozes, um segundo organizador de jogo, mais um ponta-de-lança com capacidade de movimentação entre centrais é, mesmo, um pecado para o qual dunga não encontrará absolvição.

chamar copperfield

maradona introduziu uma nova expressão no futebol mundial: "chamar copperfield". ficará essa expressão para a eternidade qualificando treinadores que não sabem o que indicar para dentro do relvado. quando a equipa estiver numa situação difícil e algum dos jogadores pedir indicações para mudar as coisas, o treinador poderá invocar a cláusula "chamar copperfield", responsabilizando, assim, o jogador daquilo que se seguir.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

eu e os outros

eu também sei citar gajos que escrevem em inglês. bill simmons e uma excelente visão do campeonato do mundo visto na américa.

é bom

o bom de um mundial de futebol é estarmos sempre a voltar aos lugares onde fomos felizes. seja um jogo da coreia do sul, um golo do japão, uma equipa africana a avançar nas diversas rondas do campeonato. o mesmo bom de um mundial de futebol é o facto de não guardarmos mágoas nesse regresso, cada oitavos ou quartos de final é também, sempre, um lugar novo, onde outras equipas e outros jogadores nos marcarão o dia para sempre no calendário da memória. é isso que é bom.

emplastro

o rui malheiro é o emplastro virtual deste mundial. todas as noites é vê-lo na rtp n, a aparecer no chat do facebook do álvaro costa, em directo para o mundo. e assim se descobre que o emplastro, mais do que ser filho do pinto da costa, é, na verdade, o rapaz que sussurra as análises certeiras dos jornalistas em reportagem nos estádios do país. um sonho tornado realidade.

saber do assunto de estruturas

maneiras diferentes de ver o jogo levam-nos a tirar conclusões diferentes do que se passa em campo. ao ver a transmissão televisiva do jogo portugal-espanha, temos a sensação de que os três jogadores na frente de ataque portuguesa estiveram sempre distraídos e afastados do jogo. mas, vendo parte do jogo através da câmara que seguiu cristiano ronaldo, vemos o jogador a dar indicações aos seus colegas, a pedir ao treinador para alterar a forma de jogar da selecção, a lutar por bolas que insistiam em fugir-lhe dos pés. são jogos diferentes. um deles, onde está a bola, a sugerir-nos um problema dos jogadores. outro, onde a bola não está, a mostrar-nos que o problema é outro, é um problema de estrutura. chegar aqui para dizer que quem defende queirós pela sua importância na estrutura do futebol português esquece que, na maior parte do tempo, a estrutura do futebol se joga em campo. podemos organizar selecções, chamar treinadores, incentivar esta ou aquela alteração no quadro competitivo das equipas de formação. mas manter uma estrutura com onze atletas num rectângulo de relva, é coisa para quem sabe do assunto. é isso que esperamos. que quem saiba do assunto apareça.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

"um pouco tristes"

um dos deputados da assembleia nacional francesa classificou as declarações de domenech, perante os deputados, como "um pouco tristes". é sempre assim, quando se tenta explicar uma derrota. dificilmente nos vale alguma coisa ter razão depois do tempo, defender decisões que não correram bem, culpar outros que não nós próprios. parecemos e ficamos "um pouco tristes". sem nada o que dizer.

o que falta

sobram agora oito equipas na disputa deste mundial. as primeiras a entrar em campo para os quartos-de-final serão brasil e holanda. é um jogo de sonho para os admiradores deste desporto, um jogo que, normalmente, cai para o lado dos brasileiros. este ano, os holandeses voltam a apresentar um meio-campo cheio de estrelas, que embaterá violentamente na betonada defesa brasileira. a tradição será, provavelmente, mais forte. mas a curiosidade e a expectativa são altas. depois, gana e uruguai, duas surpresas para esta fase da prova. ambas as equipas tentarão chegar a uma inesperada meia-final. são duas equipas que se esforçam por não cometer erros, que aproveitam bem os deslizes adversários, que sonham com o impossível. quem errar acabará pelo caminho. espera-se um jogo de prudência. no sábado, alemanha e argentina disputam o que é mais um encontro histórico de mundiais. a argentina alicerça-se na união de um grupo à volta de um ídolo (santo maradona), a alemanha tem a força e a rebeldia de uma juventude que se sente fadada para o sucesso. deste jogo sairá o mais forte candidato à conquista do título, ajudado pela confiança de bater um outro forte candidato. para finalizar esta fase, um espanha-paraguai que todos esperam que seja um passeio no parque para os espanhóis. ao paraguai caberá desfrutar desta presença em tão adiantada fase da competição, tentando não cometer erros e apostando na velocidade e ferocidade da sua frente atacante. se isso chegará para fazer mossa aos espanhóis, é coisa que esperaremos para ver. a bola vai voltar a rolar. 

contas

nesta casa, não temos dúvidas quando estamos perante grandes senhores do futebol. e um desses senhores é josé mourinho. o homem que agora é treinador do real madrid, no dia em que um coro de vozes veio a terreiro acusar cristiano ronaldo disto e daquilo, resumiu o próximo ano numa frase muito simples: "não deixarei que ninguém coloque sobre ele toda a responsabilidade de uma equipa". os dados estão lançados para termos o melhor ronaldo muito em breve. mas será bom não esquecer uma coisa:  com fernando santos, com fergunson, com scolari, com pellegrini, cristiano ronaldo foi sempre dos jogadores mais produtivos da sua equipa, tendo por isso recebido ganho inúmeros títulos e recebido imensos prémios. com carlos queirós, cristiano ronaldo é uma sombra. acho que é muito simples fazer esta conta.

sem futebol

primeiro dia do mundial sem futebol, tens a possibilidade de voltar a viver como se tudo fosse o que sempre é, dia atrás de dia igual aos outros, correrias sem bola pelas ruas da cidade, as caras do costume sem um penalti que comentar, o café sem o cheiro da relva, as sete e meia da tarde serem uma hora igual às outras. mundial sem futebol. à espera que comece o próximo jogo.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

caça às bruxas

era dado adquirido: no dia em que portugal fosse eliminado, começaria a análise ao que correu menos bem nesta campanha africana. vai ser preciso saber o que aconteceu com nani, com deco, com cristiano ronaldo. todos eles, a quente, tiveram reacções que colocam em causa o treinador e a estrutura da federação (também me pareceu que o hugo almeida o fez, nas declarações no final do jogo, mas de uma forma mais diplomática). todos eles, passado o momento da declaração, sentiram a necessidade de comunicar aos media que, afinal, não queriam dizer aquilo que tinham dito. mas, a verdade é que disseram, destapando, assim, o que parece ser um caso mal explicado no seio da nossa selecção. era dado adquirido: a partir de hoje, começou a caça às bruxas. teremos, até setembro, tempo para perceber o que muda (ou não muda) na selecção.

eduardo

os grandes jogadores são assim: ultrapassam competições a jogar sempre a alto nível, sobressaem nos jogos mais difíceis, são seguros, confiantes, combativos, não deixam nunca de incentivar e/ou criticar os colegas, saem a chorar, quando perdem. os grandes jogadores são como o eduardo foi neste mundial. inesperadamente. felizmente.

opções

o que pode parecer uma boa opção, no início do jogo, arrisca a tornar-se uma péssima opção, consoante esse jogo decorra. essa é, talvez, a grande condenação do futebol àqueles que jogam para não perder. montar um esquema defensivo é, sempre, arriscar tudo numa jogada só. montar um esquema defensivo sem um plano b que  possa transformar a equipa numa estrutura ofensiva capaz de alterar um resultado, é suicídio. ontem, carlos queirós escolheu ajoelhar-se perante o inevitável. o inevitável na sua visão do futebol. voltou a colocar jogadores fora das suas posições, manteve (durante 90 minutos) o meio-campo em inferioridade numérica perante o adversário, recorreu à táctica condenada ao falhanço de esperar que o ronaldo resolvesse o jogo. escolher bem é sempre o mais difícil, numa competição. escolher bem a meio do jogo, é essencial para se ser um grande treinador. carlos queirós demonstra, há 17 anos, que isso é coisa que ele não sabe fazer.

terça-feira, 29 de junho de 2010

venha ele

chove na cidade do cabo. em portugal, brilha o sol, uma leve brisa toma as ruas, fazendo ondular bandeiras e cachecóis pendurados nas varandas. faltam três horas para o primeiro duelo ibérico de sempre num campeonato do mundo. quer portugal, quer espanha, já foram equipas onde brilharam intensas gerações. mas nenhuma delas cresceu como as actuais equipas de cada país. portugal com uma equipa plena de jogadores que, desde muito novos, sabem que vão ser craques de grandes equipas mundiais (por inglaterra, espanha, itália...), espanha com uma equipa que cresceu a ver o seu campeonato tornar-se no mais mediático do mundo, certos de que o seu futuro seria feito de dérbies entre barcelona e real madrid à escala mundial.
chove na cidade do cabo. os jogadores que vão entrar em campo já se defrontaram centenas de vezes, em competições de selecções (desde os quinze ou dezasseis anos), em competições de clubes (sejam nacionais ou internacionais, mais do que uma vez por ano). de cada lado, a responsabilidade de ganhar o jogo. a possibilidade de, com uma vitória, se estender uma passadeira até ao topo das maiores equipas do mundo, um lugar onde a espanha nunca chegou, um lugar que portugal já espreitou por duas vezes, sem o conseguir agarrar. de cada lado, a responsabilidade de ser considerado o melhor.
chove na cidade do cabo. em portugal, brilha o sol. as pessoas andam na rua como se esquecessem, saem apressadas dos empregos, ultimam as compras, telefonam a amigos para confirmar que todos se vão juntar a ver o jogo. em espanha, imagino, acontece exactamente o mesmo. em certos dias, devíamos ter a capacidade de acelerar o relógio para que o grande momento em que duas equipas entram em campo chegasse mais depressa. no fundo, acordámos todos a pensar nisso: no portugal-espanha de logo à noite. tudo o que aconteceu valeu pouco em comparação com o que se irá passar durante o jogo. morreram pessoas, namorados zangaram-se, ocorreram acidentes, boas e más notícias, tudo confundido na memória futura de cada um com os noventa (ou mais) minutos de um jogo de futebol.
venha ele.

vai para casa

se houve uma equipa que jogou sem precauções, foi o chile. encantou-me com a sua entrega em campo, com o seu futebol a andar para  a frente. mas não se pode jogar assim contra um brasil, cínico, mas ainda um brasil. três a zero é um resultado pesado, mas quem viu o jogo só se espanta por não ter sido ainda maior a diferença. acabou-se a festa para bielsa, mas este chile fica como uma das equipas que faz a resistência ao jogar para o resultado. por muito bom que isso seja, vai para casa cedo.

devagar para ir longe

um mundial de futebol vence-se com precauções. não é uma coisa bonita de se pensar, não é com gosto que digo isso. mas é uma realidade. aliás, quase todas as competições futebolísticas se vencem com precauções. sei disso desde 1993/94, quando o tirsense ganhou a liga de honra com uma táctica de nove defesas. quando se assiste a um jogo da holanda, não se espera que até eles pensem que o melhor é chegar à próxima fase com vagar. mas sim, a holanda também já entendeu. um jogo ganha-se marcando golos e fazendo tudo para evitar sofrer. não é com gosto que digo isto. mas parece-me que é mesmo esta a verdade.

uma questão de horários

cada mundial obriga-nos a criar todo um programa de conjugação entre a nossa vida e os horários dos jogos de futebol. ora se vivem mundiais que se prolongam pela noite dentro (como nos estados unidos), que nos obrigam a levantar a horas impróprias da cama (como o da coreia/japão) ou então aqueles mundiais que nos fazem ter que fintar uma série de obrigações profissionais para não perder os jogos (é o caso do mundial que agora decorre, como foi o caso do mundial da alemanha). das várias hipóteses, a que guardo, até agora, como mais difícil foi a dos estados unidos. jogos que começam à meia-noite, duas ou três da manhã, fazem com que o sono (e algumas vezes o peso de uma saída à noite) lute furiosamente contra a nossa capacidade de dispensar atenção a um jogo de futebol. já lembrei aqui longas lutas contra o sofá para resistir à final do mundial de 94, mas dos jogos mais complicados de acompanhar, para mim, foi um argentina-portugal, nos jogos olímpicos de 96, quando, com alguns amigos e uma garrafa de gold strike, a cada minuto que passava mais complicado era discernir entre o que era jogador português, jogador argentino e relvado. incrível, como ficou memória disso.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

ficar alerta

em janeiro de 2011, a coreia do norte voltará a participar numa competição internacional de futebol, a taça das nações asiáticas. quantos jogadores e treinadores dos presentes neste mundial estarão nessa competição? segundo as notícias, o melhor mesmo é ficar alerta.

obrigado alemanha

senhores e senhoras, a alemanha. depois de no início do campeonato, o bonito futebol germânico ter cilindrado uma equipa menor, chegou agora a vez de dizimar um presumível candidato ao título. os alemães foram sempre mais em campo, estiveram mais vezes nos lugares certos, dispuseram de uma alegria que enfureceu os ingleses momento a momento. esta alemanha é a selecção que se apresenta mais equilibrada nesta fase do campeonato. e daqui a uns dias, defrontará a argentina, outra equipa que tem na alegria uma das suas características principais. futebol e golos, são a expectativa. mas, por agora, obrigado, alemanha, por nos fazeres felizes a ver futebol.

maradona

na equipa argentina, com tantos craques juntos, a táctica não será um factor mais importante do que a união do grupo. e é por isso que maradona é o improvável treinador de sucesso nesta selecção. não só na energia que coloca em jogo, com a sua acção irrequieta na linha lateral durante os noventa minutos, mas também em pequenos gestos, como o beijo a todos os jogadores, no túnel de acesso aos relvados, momentos antes da entrada em campo.

o árbitro

parece que os árbitros decidiram começar a dar nas vistas. hoje, um golo claro que ficou por sancionar, no alemanha-inglaterra, e um golo em fora-de-jogo a contar para o marcador. em ambos os casos, pior do que ser ou não golo, é o efeito que a decisão do árbitro tem na equipa. os ingleses ficaram privados da força mental que o empate ao intervalo lhes traria, os mexicanos perderam-se, até porque, pelo que deram a entender as imagens, a repetição da jogada foi exibida no estádio.
quanto mais depressa se optar pela utilização das imagens televisivas nas decisões de jogo (sobretudo nas jogadas de golo), melhor será para o futebol. até porque, em ambos os casos, se a decisão errada entra nos anais da história, a decisão certa teria permitido mais espectáculo durante o jogo. e acho que seria nisso que os senhores da fifa deveriam pensar.

domingo, 27 de junho de 2010

apontamento

não deixo de me espantar com aquelas pessoas que consideram que o futebol é uma ciência matemática. vêem os jogos como se fosse um filme previamente dirigido, acreditam nas opções de treinadores e jogadores como as únicas possíveis, não pressentem a mínima possibilidade de irracionalidade num jogo que decorre à volta de uma bola que salta. não deixo de me espantar porque, para esses, está reservado o lado mais triste do jogo. a previsibilidade. é por isso que não podem encontrar nenhuma piada na discussão do jogo, na previsão da possibilidade, na eventualidade do acontecimento se desenvolver de maneira diferente. provavelmente, essas pessoas, olham dessa mesma forma para a vida. e cansam-se, diariamente, das fugas inevitáveis ao guião.

gelo negro

não consegui assistir a todo o jogo entre os estados unidos e o gana. mas do que pude ver, ambas as equipas mostraram, exactamente, aquilo que tinham prometido. combatividade e luta pela vitória do lado dos estados unidos, físico e paciência, do lado dos ganeses. o gana não é mesmo uma equipa nada africana na sua forma de jogar. se conseguir manter essa frieza, será um forte candidato à meia-final, logo num ano em que não dispõe da sua figura principal. tentem imaginar um portugal sem cristiano ronaldo, uma argentina sem messi, uma inglaterra sem rooney. os ganeses unem-se no colectivo para ganhar jogos. e continuam a ganhar.