domingo, 31 de janeiro de 2010

o amor segundo daniel galera

é porque apesar de tudo, danilo queria dar-lhe uma nova oportunidade. e talvez seja isso mesmo que anita sente como inaceitável. que o homem que falhou na primeira vez, tenha agora o poder de perdoar. em cordilheira, daniel galera percorre um longo caminho para que apenas uma coisa seja evidente. melhor que o amor, só mesmo o amor. o amor que, no meio da tempestade, guardamos por nós próprios.

perder

anita perdeu a mãe ao nascer, perdeu o pai quando começava a ser adulta, perdeu um livro que teve um enorme sucesso contra o seu desejo, perdeu o amor por um homem que não quis ter um filho com ela, perdeu o filho que trazia no seu ventre, perdeu um outro homem que estava já perdido quando a encontrou, perdeu todas as suas amigas, as suas referências, o seu próprio espaço na casa que um dia fora sua. no fim de tudo isto, dão-lhe oportunidade para recuperar uma das coisas que havia perdido. mas até ela sabe que nunca é possível resgatar aquilo que se perdeu para sempre.

cordilheira

acordo muito cedo este domingo e termino de ler cordilheira, de daniel galera. percorre-se todo o livro a conviver com um bando de adolescentes tardios que vivem a literatura como se ela fosse algo que realmente pudesse mandar nas suas vidas. como outros adolescentes tardios culpam o capitalismo, os personagens argentinos do livro de galera culpam os livros. mas, no entanto, todo o livro é sobre o amor. sobre o amor profundo e encenado que, por um pormenor, acaba. assim, sem menos.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

o nosso eusébio para o século xxi

ou então talvez não seja isso. talvez seja outra coisa completamente diferente. talvez os portugueses reconheçam, finalmente, que não basta ser um país de poetas, que é preciso pagar uns trocos, ir às leituras de poesia, fazer disso um espectáculo. ou então talvez agora a poesia seja um bem de consumo internacional, exportável, bonito para apresentar nas grandes feiras da economia internacional. talvez a poesia seja o nosso novo sol, o nosso vinho, o nosso eusébio para o século xxi. ou talvez estejamos todos parvos. talvez.

imitação do inferno

faz-me lembrar ruy belo. teria este... se não tivesse outro sentido, ser natural de um país subdesenvolvido. ou seja, já não nos bastava a utilização forçada da poesia e da imagem do fernando pessoa em tudo o que é para ser portuguesinho, ainda temos que levar com um gajo a falar um português que não é de lado nenhum. acabamos de entrar numa nova era: aquela em que, tal como as festas dedicadas ao elvis ou ao michael jackson, levamos com fernandos pessoas wannabe's de todos os lados.

chama-lhe remix e pode ser que passe

o jô soares a ler fernando pessoa em "português de portugal" na cidade de lisboa, é um pouco como encontrar zezé camarinha a representar shakspeare em londres.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

mundo

cabe dentro do meu peito um furor de movimentos que não controlo, que não defino. cabe dentro de mim, eu não nomeio. mas os meus braços, as minhas pernas, correm dentro de mim também em prospecção desse rebentamento. cabe dentro de mim, e eu sou enorme. sou as montanhas e os vales lavados a sangue de vida. sou os rios e os mares em marés sempre mais cheias. cabe dentro do meu peito um furor de movimentos que não controlo, e não definho. eu sou um mundo, um mundo, um mundo.

grito

não me retiro para a aldeia em busca do silêncio dos homens, não. eu enfrento os homens como o são, como o foram, e tento percebê-los quando mergulhados em mesquinhez. não me retiro para a aldeia em busca da salvação da alma, não. eu escrevo o meu coração como ele bate, no seu ritmo, sem temer a sua paragem ou aceleramento. não me retiro para a aldeia, não. eu estou aqui. estou no centro do furacão. e se levanto a voz é porque sei que é assim que me faço ouvir. num grito profundo escrito a caneta na folha de papel.

cicatriz

não receio o espelho, nem quando ele ameaça partir-se em minhas mãos. receio mais os homens que descobrem como utilizar o poder em seu benefício. receio mais as multidões onde os ignorantes estão prontos a seguir um líder. não receio o espelho, mesmo que o vidro se faça lâmina e o sangue escorra da palma da minha mão. vivo bem com a cicatriz, bem melhor do que com a podridão.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

sabor

e quando lhe perguntaste pelo sabor do beijo, ele fechou os olhos e ficou sem saber o que dizer. o sabor do beijo são lábios, línguas, dentes, saliva. o sabor do beijo são olhares, pensamentos, sensações, excitação. e quando lhe perguntaste pelo sabor do beijo, ele não soube comparar nada disso com o sabor de alguma coisa outra que lhe fosse conhecida. sabia a beijo, o beijo. a nada mais.

cheiro

não te ficou mais nada senão o cheiro dele nas tuas mãos, o cheiro forte com que ele te invadiu os braços e se pôs em ti como sempre te tivesse pertencido. não te ficou mais nada, apenas o cheiro dele, pelas tuas mãos terem subido por dentro da camisa, conquistando-lhe as costas, o peito. o cheiro, e é essa memória que agora teces, como uma enorme camisola, para a vestires sempre que te sintas só.

tacto

a tua mão descendo pelo corpo, que tão quente do pijama não sabe se é inverno ou verão, conquistando a pele a cada milímetro para o que não te sai da cabeça, aquela outra pele, o outro corpo, enfim, já um pouco misturados nos teus dedos, a mão que desce, o calor, até que as tuas pernas se abrem um pouco, quase nada, o suficiente para que o teu sexo absorva do prazer a invenção táctil em que tens pensado.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

mergulho

o primeiro beijo não é uma decisão. é um acontecimento em que os lábios se encontram naturalmente. na verdade, já sabes que o beijo irá acontecer. pelos olhares, pela disposição do corpo, pela aproximação. tens assim, a cada dia que passa, mais um primeiro beijo. mais um momento em que tudo em ti impele ao encontro. e esse encontro é a inauguração dos beijos, da imensidão de beijos, com que pretendes banhar-te por completo nesse dia.

antes

houve um primeiro beijo à chegada de um comboio. um primeiro beijo num quarto de hotel. um primeiro beijo num carro. um primeiro beijo junto a umas escadas. um primeiro beijo num bar. um primeiro beijo que foi único. e houve, também, um primeiro beijo que nunca foi dado. onde os lábios ficaram suspensos, como quem espera. como quem já beijou ainda antes de ter beijado. houve.

primeiro beijo

não me lembro do meu primeiro beijo. era capaz de te dizer que foi dado na serra da vila, em casa da minha avó. mas o mais provável é que tenha sido em minha casa, em torres vedras. bem que eu gostava que tivesse sido dado na serra da vila. a história tem muito poucos primeiros beijos dados na serra da vila. não me lembro do meu primeiro beijo. deve ter sido dado num quarto ou numa arrecadação. talvez debaixo de uns lençóis, quando as mães e as avós ainda acreditavam que os meninos e as meninas podiam dormir a sesta juntos. juntos e sozinhos. bem, não me lembro do meu primeiro beijo. mas lembro-me da minha avó ter proibido as brincadeiras entre mim e a minha prima.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

existir

eu não preciso de dizer nada para que o sintas. no fundo, já te basta imaginar para que assim seja. ainda assim, persegues em cada canto da casa um cheiro, um resquício da minha presença entre as tuas coisas. no fundo, a imaginação já contaminou todos os teus gestos. eu não preciso de dizer nada para que o sintas. eu não preciso, sequer, de existir. a partir daqui.

palavra

queria ser capaz de fazer do corpo uma palavra só que te enchesse as fantasias. depois poderias dançar sobre os lençóis de qualquer cama, seria sempre eu quem te inauguraria o sexo, quem teria morada no teu prazer. queria ser capaz de fazer do corpo uma palavra só, um gesto certeiro e inaugurador dos desejos que a partir daí te preencheriam. depois poderias ser quem tu quisesses, com quem tu quisesses. serias minha para sempre.

nada

nada para dizer, apenas um silêncio de todas as coisas da casa, apenas os passos da senhora que lava a escada todas as semanas, nada para dizer, apenas o acordar mais uma vez aqui, apenas o assobio de um pássaro (ou será de um homem) lá ao fundo da rua, nada para dizer, nada para dizer.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

sete mulheres


lamento agora não ter acreditado quando me disseram que no fim do arco-íris existe um tesouro. um tesouro é coisa para ficar guardada, eu nunca o perseguiria. mas não, eu não acreditei. fiz-me ao caminho como quem não encontra nunca algo que o satisfaça, e para todos eu tinha um sorriso inventado, uma palavra desfeita, para todos eu dava a ilusão de acreditar naquilo que realmente não acredito. lamento agora não ter acreditado quando me disseram que no fim do arco-íris existe um tesouro. não gosto de ouro. não me interessa a prata. quero lá saber do bronze. também não engulo a história do tesouro ser algo que se sente, que emociona. nada disso. fiz-me ao caminho como quem conhece todas as estradas, demorei dias, ultrapassei montanhas. e tudo, tudo para agora lamentar não ter acreditado quando me disseram que no fim do arco-íris existe um tesouro. para que as sete mulheres que tu és me envolvam nas balas deitadas pelas vossas armas de brincar. para que as sete mulheres que tu és me deixem assim, preso e meio desentendido das verdadeiras coisas do mundo. para que as sete mulheres que tu és me mudem e me façam outro, bem diferente, daquele que eu era quando não acreditei quando me disseram que no fim do arco-íris existe um tesouro.

* fotografia de maria flores, "rainbow warriors"

os corta-casacas


eles nunca chegam, na verdade, eles sempre lá estiveram, no mesmo sítio, de onde tudo se vê na perfeição incompleta dos seus olhos curvos. não diria que têm palas, como animais, eles são dos mais selectivos dos seres humanos. ficam calados lá do alto, a ver pelos seus olhos-binoculares tudo o que fazemos. depois, depois apenas sentimos o frio das tesouras rente à pele, as casacas desfeitas. depois, depois apenas percebemos que para além dos olhares que sempre lá estiveram, outros se somam, mais tímidos, mas igualmente cortantes. eles nunca chegam, não, eles sempre lá estiveram, no mesmo sítio. depois, depois nós continuamos como sempre. perseguidos e desentendidos das coisas da vida. apenas sentimos nas costas aquele ligeiro incómodo da lâmina que se crava no corpo. no nosso corpo.

* fotografia de maria flores e josé de almeida, "os corta-casacas"

sonhas, amas, condenas


tu sonhas, amas, condenas. danças entre os palcos e eu assisto à tua transformação, quieto, bem de longe de onde a tua pele é calor ou ameixa pronta a colher. tu sonhas e desses sonhos eu não faço parte, sou a ausência do teu vestido branco, o impossível de guardar na pequena caixa musculada do teu coração. tu amas e desse amor eu não sou nem peça acessória, de teus seios esquecido, de teus sabores apagado. tu condenas e talvez seja essa a porta por onde eu entro, finalmente, por um mínimo momento apenas, na tua vida. e eu assisto, quieto, bem de longe, de onde a minha dor tem a mesma coloração dos teus olhos.

* fotografia de maria flores, "women in three stages"

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

casaco da culpa

um dia entrou em casa e despiu o casaco da culpa. guardou-o no armário, já com a firme intenção de o queimar. o casaco acabou por ficar esquecido a acumular humidade no canto fundo do armário. ele próprio esquecera-se dele, até que um dia, numa arrumação, o encontrou, manchado pelo tempo. meteu-o num saco e deixou-o à porta da igreja. umas semanas depois, um homem que ficara feliz por ter recebido um casaco quente para o inverno, começou a sentir sobre os ombros toda a culpa que tinha esquecido pela vida. e quanto mais protegido se sentia do frio, mais tristes eram os seus olhos.

fita

conheces a situação: uma coisa que fica a vida inteira a destruir-te por dentro quando, do outro lado, alguém sorri descontraído como se nada tivesse acontecido. conheces a situação: a raiva cada vez maior a espumar-te os cantos da boca e do outro lado um assobio fácil rua abaixo. conheces a situação: não há nada que possas fazer. mesmo nada que possas fazer, sem ser algo que te torne, finalmente, o mau da fita.

horas

correr as horas para encontrar uma saída do lugar onde enterraste as chaves, correr as horas e perceber quanta solidão, quanto isolamento engordam a tua relação com o mundo, correr as horas e sentir as lições aprendidas na infância cada vez mais sem razão, querer ser crescido e não saber, deixar que o tempo apague para sempre as coisas que ficaram ditas, talvez os outros já nem se lembrem, correr as horas e não encontrar nada.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

do outro lado

quando todos estão a olhar para a direita, tu reparas no que acontece à esquerda. uns chamam-lhe visão periférica, mas tu sabes que tens a atenção dispersa por defeito. os que todos virem, alguém te haverá de contar. mas do outro lado haverá sempre qualquer coisa que só tu viste. mais ninguém.

respira

respira fundo, luís filipe cristóvão, respira fundo, não deixes que a velocidade das coisas te atropele, não deixes que o vento sopre mais alto que os teus pensamentos, respira, respira, tem cuidado onde pões o pé, não vás pisar o calo que fica sempre esquecido, respira fundo, respira, e faz as curvas que tiveres a fazer para que o fato fique engomado até ao fim do filme, sim, não vá o calo queixar-se, não vá o coro rir-se e tu, sempre tanto e tão pouco distraído, ficares chateado porque te parece que se estão a rir de ti.

cabeça

a minha cabeça cheia de coisas e os nossos corpos a arrumarem-se debaixo do lençol, és capaz de mudar o lugar dos móveis sem fazer esforço nenhum de braços, os teus olhos fixam-se nos objectos e eles movem-se, enquanto eu fico sentado a ler o jornal mas sem conseguir concentrar-me nas notícias, a minha cabeça cheia de coisas e os nossos corpos a viajar rumo a itália, era uma vez um macaquinho do chinês, os homens todos do café a perguntar por mim, a casa irreconhecível quando regressei, e quase até era capaz de jurar que havia um outro homem, exactamente como eu, a ler o jornal, com a mesma cara de espanto que eu fazia sempre que tu mudavas as coisas do lugar.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

viagem

pela estrada acima, a ver o sol transformar-se em chuva, a ver a chuva transformar-se em estrada, a estrada em saída, a saída em encontro, o encontro em cidade, a cidade em almoço, o almoço em passeio, o passeio em ria, a ria em pontes, as pontes em ovos moles, os ovos moles em estrada, a estrada em reconhecimento, o reconhecimento em amizade, a amizade em presentes, os presentes em despedidas, as despedidas em estrada, a estrada em chuva, a chuva em sol, não fosse já de noite a chegada.

pérolas a porcos

tem a voz apagada, deitada sobre a mesa como um vómito. tem a voz apagada, os olhos fechados, e da boca a língua sai-lhe enrolando-se sobre as barbas mal feitas. por entre o discurso mal recortado, ampara os óculos, hesita muito tempo antes de responder e não responde. tem a voz apagada, o corpo é só uma massa inútil e esquecida dentro do casaco. despede-se completamente ignorante da beleza que o rodeia. e fecha a porta.

chuva espessa

a chuva cai espessa perto de estarreja, a estrada molhada, uma vaca no meio do verde da erva que cresce livre nas bermas das estradas. quase que se entrevê, no largo principal da cidade, um carro de bois a virar ao fundo, dois homens de cartola a passear os sapatos pelo silêncio enorme da construção. a chuva cai espessa perto de estarreja, e isso permite-nos não ver a modernidade já antiga que veio ferir de morte este lugar, enchido e logo esvaziado de esperança. permite-nos aceitar como normal que as cidades morram, que as pessoas passem, quando, na verdade, se fixassemos bem os olhos para lá desta cortina de chuva, seríamos bem capazes de encontrar um caminho aberto para nascer outra vez.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

abraço

o abraço ainda não foi o abraço e já foi o abraço mesmo antes de o ter sido. os teus olhos fundos no meu peito, a forçarem a entrada, e eu frágil, deixando tudo. o abraço ainda é um projecto e já tem tantas fundações quanto os desejos, quanto os sonhos que vamos inventando nos momentos mortos dos nossos dias. o abraço ainda não foi e já é, um contínuo aproximar, até que o seja, completo.

pedra

no próximo dia do teu choro, chega a tua face ao meu pescoço e esconde em mim as tuas lágrimas, aquelas que mais te custam a sair, porque são a água que quebra a pedra que envolve o teu coração. não, não te digo frio. mas todos temos uma pedra em volta do muscúlo essencial, não fosse ele sair-nos do peito a entregar-se a cada réstia de beleza com que nos cruzamos na vida. vem, então, esconder em mim as tuas lágrimas, deixarei que a tua água se infiltre na minha pele, e poderei lavar a pedra que envolve o meu coração, tão difícil de quebrar como o medo de que se quebre mesmo.

sala

não me assusta a sala vazia, não está frio. tenho em mim todas as memórias dos dias passados, do quentes movimentos que nos fizeram sorrir juntos. não me assusta mais a sala vazia, os copos onde ficou um pouco de vinho, a marca dos teus lábios. tenho em mim todos os frutos que colhi dos teus olhos. não me assusta, não me assusta a sala vazia.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

língua

inventaram-nos uma língua para o corpo e era a festa que começava a cada canto da cidade. uma cidade não bem cidade, um descanso. inventaram-nos uma língua para o corpo e o corpo soltava-se por entre os dedos de quem nos segurava. pessoas não bem pessoas, imagens perdidas na miopia dos óculos esquecidos na cabeceira da cama. inventaram-nos uma língua para o corpo e a língua éramos nós próprios, nus, abraçados e felizes, como quem não soubesse ainda do nascimento das palavras.

batota

fazes batota quando ficas parada a olhar para mim. eu a fingir que não estás lá. fazes batota. fazes, porque sabes que assim fico frágil, nas tuas mãos. e tu fazes batota. ficas parada a olhar para mim.

dedos

pousei os dedos sobre a mesa enquanto te olhava os gestos delicados, uma azáfema retirada de um filme do cinema. pousei os dedos, havia um livro, a janela aberta, os prédios. olhava os teus gestos, os teus cabelos caídos nos ombros, os teus olhos pequenos atentos a cada uma das coisas que havias deixado pela casa. havia paz.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

mulher

a mulher mais bonita da cidade também lá estava. levava saia curta, o cabelo apanhado. a mulher mais bonita da cidade. os mortos perguntavam-se o que faria tal beldade num cemitério. as flores murchavam à sua passagem. a mulher mais bonita da cidade foi ao meu funeral. foi o que ouvi dizer. receei que ao abrir os olhos para ela fosse obrigado a regressar, de novo, à vida que tinha escolhido abandonar.

casaco preto

eu tinha este casaco preto para escrever poemas e agora deixei de escrever poemas. eu tinha este casaco preto para apanhar comboios e ninguém me vende bilhetes. eu tinha este casaco preto para ir à festa e a festa acabou. eu não percebi o aviso, não ouvi a sineta. eu tinha este casaco preto. para alguma coisa seria, um casaco preto.

funeral

a boca torta de encontro ao vidro e lá fora um funeral. a boca torta, o grito calado. lá fora a comitiva presidencial, em bem maior número que as viúvas. as coisas fora do sítio. a boca torta, o grito no silêncio. e lá fora, lá fora.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

maquilhagem

eles habituaram-se a pensar que pedir desculpas chega para ganhar uma segunda oportunidade. e esquecem-se que os erros não se apagam, apenas se maquilham, para parecer melhor na televisão.

aposta

restam-te apenas algumas moedas no bolso e o tempo das apostas a chegar ao fim. apostar na indefinição não é uma opção. passeias as moedas entre os dedos, imaginas cenários, corres até ao balcão onde uma mulher que não sorri te espera, sabendo já que apostarás no cavalo errado. a vida é mesmo assim, habituaste-te a pensar. continuas sentado na sala de espera da casa de apostas, enquanto a funcionária desliga já as televisões.

calado

ficas calado entre os lençóis a ouvir o vento e a chuva lá fora. ficas calado. falha a electricidade, as comunicações. ficas calado entre os lençóis a ouvir a tua própria respiração pesada. ficas calado. talvez tenha falhado o mundo. tu não. tu estás aí. calado.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

ligações

mesmo quando te são imperceptíveis as ligações que se estabelecem na minha cabeça perante as coisas do mundo, deverias acreditar que essas ligações existem. no entanto, levantas a voz e organizas uma manifestação. entretanto, na minha cabeça as ligações imprevistas continuam, no seu ritmo, perdendo até a originalidade por terem tantos anos quanto eu. ou seja, mesmo quando te são imperceptíveis as ligações que se estabelecem na minha cabeça perante as coisas do mundo, deverias, pelo menos, acreditar, que elas já por lá estão há mais de trinta anos.

pensar

pode parecer-te estranho a quantidade de vezes que digo janelas partidas. mas em frente a minha casa há um campo de futebol onde todos os dias as crianças correm e chutam bolas. pode parecer-te estranho os resultados das minhas somas e divisões. mas é assim que eu respiro, saltando linhas e quadrados, fazendo as coisas sempre de uma forma em que essas mesmas coisas seriam imprevistas. não sei ainda se me lês. mas sei também que não preciso. não preciso do teu olhar para saber, tão certo, aquilo que tu pensas.

matemática

aos nossos passos não os medimos com as réguas estendidas pelo chão dos estádios olímpicos. antes preferem dizer um número aproximado, algo não matemático. nunca somos capazes de reagrupar os espíritos que se perderam nos sonhos repetidos de todas as noites. mas também não sabemos muito bem como dizer um mais um em pessoas, esquecidos que foram os cadernos com páginas quadriculadas.

sábado, 9 de janeiro de 2010

engano

engana-me com as palavras que te dei, aquelas que guardaste dentro do bolso quando saíste a correr em direcção ao comboio para o norte. engana-me, diz-me que voltas esta noite, engana-me e faz-me sorrir enquanto conduzo distraído pela marginal. engana-me com as palavras que te dei, as mesmas palavras que te ofereço sempre que sais a cada manhã. engana-me, como o souberes, engana-me e deixa-me a sorrir para o resto do dia, para o resto dos dias, das noites, das manhãs, todas aquelas manhãs em que não estarás ao meu lado ao acordar.

os campos na face

são muitas as coisas que se fazem com dois dedos sobre os teus lábios: carícias de calor, sussurros derretidos, varandas para o precipício dos teus olhos, correrias loucas em volta da tua boca. são muitas as coisas que se fazem com dois dedos sobre os teus olhos: descidas em carrinhos de rolamentos para o beijo, idolatrias várias, narcisos de tom rosado, segredos para os sonhos dos que não vêem. são, também, muitas as coisas que se fazem entre um e outro gesto. e tu podes adivinhar.

escuta

vou agora dizer-te como se fazem os caminhos no mar, vou agora dizer-te como se encantam as serpentes, como se bebe dos frutos nas árvores mais altas, como crescem as crianças até serem o adulto mais brilhante do mundo, como se semeiam as estrelas, vou agora dizer-te, escuta-me.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

boletim meteorológico

apenas insistimos em repetir a ausência de momentos, como todo o desejo fosse um castigo e todo o sorriso apenas a antecâmara de uma lágrima que ficará guardada para chorar na almofada vazia, no esquecimento, enfim, no dia em que a chuva voltar a fazer escuro o céu. apenas isso.

polaroid

a tua boca fechada à sede do beijo que ficou pendurado nos meus lábios, a sede toda por satisfazer, a tua boca fechada, o beijo pendurado, no fim.

photomaton

a tua mão bem aberta no meu peito, não mais, afastando-me para fora da sala, não quero, enquanto o meu corpo despido vai deixando, pelo chão, pequenos restos do desejo oferecido.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

desenhador

desenha no meio do escuro uma luz fraca e deixa que as árvores adormeçam, depois começa a contar a partir do três, era uma vez, era uma vez. desenha, pode ser nesse papel, aí, sobre a mesa, desenha devagar, respirando, não vá a faca chegar-se a ti no momento do ponto final, afinal, afinal. o teu lugar é calmo, a tua mão é tempestade, e passaste tanto tempo a fugir do que te doía que nunca compreendeste o lugar onde se esconde a ferida que sangra, mas respira, mas desenha, à nossa volta as árvores adormecem, a contar, a contar, outra vez, era uma vez e acabou.

antena

pende do telhado a antena, foi o vento ou o tormento de não teres chegado ainda, ligo a televisão, cai a chuva no chão da sala, mau tempo afinal. pende do telhado a antena, uma frase de cada vez, nunca serei um grande romancista português, não tenho perfil para os top's da escrita a metro. pende do telhado a antena, não consigo sintonizar o sentido do teu voto, foi o vento, foi o vento, cá em casa inundação, na tua, não?

uma história

sabes quantos dias demora a chegar uma carta do outro lado do atlântico mas não sabes medir as batidas do coração dos outros. perdes, muitas vezes, o equilíbrio, mas ainda sorris perante a trovoada. melhor seria dares passos pequeninos, beber dos copos que te enchem sobre a mesa. mas tu segues, segues como quem nada sobre as ondas, olhas o céu, imitas os pássaros. eu não sei que música escolher para a tua banda sonora. eu não sei o que dizer.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

segredar

vem, por isso, à minha beira, e sussurra baixinho ao meu ouvido as palavras novas que aprendeste. eu sei que nesse momento saberás o que dizer. e sei, também, que será isso mesmo o que eu vou querer ouvir.

segredo

caminha comigo e eu conto-te um segredo, mando-te para o degredo, ensino-te a não ter medo. caminha comigo e acabarás por encontrar, aquilo que estou te estou agora a começar a contar.

segredos

trazemos sempre muitos segredos dentro de nós, em sacos, nos bolsos. segredos de sobra para nos pesarem, nos encantarem, nos prenderem. trazemos sempre muitos segredos para partilhar. e depois tu perguntas: partilhar segredos? eu sorrio, sabendo que não preciso de te responder. basta olhar nos teus olhos e já começo a saber um pouquinho mais de ti.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

bebida

não direi dos teus seios no escuro, o nosso futuro é saborear o passado que nunca existiu. digo-te sentada, na espera cuja sede denuncia. digo-te limpa e breve como uma manhã por inaugurar. as leves curvas do teu corpo, os teus lábios entreabertos. digo da força dos teus joelhos, o poder das tuas coxas. as pérolas enegrecidas, a espera, a espera. os copos sempre cheios e nós cansados de os encher. a bebida divina. eu digo.

cinema a preto e branco

dança, dança, a raiz quadrada, o balão das marchas, dança, dança, os pés soltos, as mãos livres, dança, dança, os cabelos mágicos, os lábios solúveis, dança, dança, dança.

a espera

um dia talvez, junto dos cabides de onde desaparece a roupa, um dia talvez, a partir do teu colar de pérolas, das tuas pernas despidas, eu possa rastejar de encontro à minha saliva e nesse gesto encontrar a tua pele. um dia talvez, junto do teu olhar de conquista, um dia talvez, a partir do desprezo a que me votas, as peças antigas, os pés virados para dentro, eu ausente do desejo mas presente, marcado, como uma ferida que não fecha, fica, fica para sempre.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

irmã

as irmãs são aquilo que são e não aquilo que nós queríamos que elas fossem quando nasceram. na verdade, nós também não somos aquilo que imaginávamos vir a ser. as coisas tomam, portanto, os seus respectivos caminhos. as irmãs serão irmãs. nós seremos nós próprios. entre uma e outra coisa há o amor. as coisas tomam, portanto, os seus respectivos caminhos.

outros dezassete

ontem, enquanto percorria os corredores do centro comercial à procura da tua prenda, dei por mim a pensar no que eu era quando tinha dezassete anos. e aquilo que eu me lembro é de estar em casa, numa algazarra, cheio de gente à minha volta. lembro-me de como aos dezassete anos o corpo pede e a cabeça não percebe. lembro-me de ter lido uma série de livros que me ficaram para a vida inteira. lembro-me de ser uma espécie de jogador de futebol sem jeito para a coisa. lembro-me de escrever poemas. lembro-me de que já lá estava tudo, quando eu tinha dezassete anos. tudo muito mal arrumado. é isso que eu te posso desejar hoje. que agora que tens tudo o saibas arrumar.

dezassete

faz agora dezassete anos, agora não, hoje, descia eu a rampa das traseiras da física, onde agora estão as piscinas, descia por ali, com o diogo, e o pai vinha a subir, do lado do hospital, e foi aí, nesse preciso momento, faz hoje dezassete anos, que eu soube que tinhas nascido.

sábado, 2 de janeiro de 2010

adormeces

contas os minutos deitado na cama, seis da manhã, contas os minutos, pensas, não tenho sono, adormeces, contas os minutos deitado na cama, seis e trinta e sete, pensas, não tenho sono, adormeces, contas os minutos deitado na cama, sete e vinte e oito, pensas, não tenho sono, adormeces, contas os minutos deitado na cama, sete e cinquenta e oito, pensas, não tenho sono, adormeces, contas os minutos deitado na cama, oito e vinte e quatro, pensas, está na hora de levantar, tens sono, adormeces.

perder

não te queres perder, mas é bom que te percas. não dês como garantido aquilo que conseguiste no texto anterior. perde-te. procura uma palavra que nunca tenhas usado, uma ideia que possas explorar de forma diferente. perde-te. não repitas o poema, não repitas o verso. perde-te. não te queres perder, mas é bom que te percas.

dia 2

saber perder-me numa rua que sempre conheci, saber perder-me, começar de novo, e os passos inseguros pela calçada, as paragens para perceber onde pôr os pés no momento seguinte, são a aprendizagem necessária para que, umas ruas mais à frente, já saibas como respirar, se te voltares a perder outra vez.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

ano novo

o meu recado de ano novo: é o meu trabalho. é aquilo em que eu invisto a minha vida. faço-o bem, caso contrário fechavam-me a "loja". o meu recado de ano novo: quem não gosta não compra, não lê. o que não faltam por aí são alternativas para todos os gostos. o meu recado de ano novo: só brinca comigo quem eu quero. acho que quanto a isto ficamos entendidos.

2010

começar com um sorriso, uma paz irradiante. só poderá ser um bom. mesmo.

cozinha

trocamos passos de dança pela cozinha, sem ensaiar. por várias vezes os nossos corpos se encontram, num beijo, numa carícia, num abraço. passos de dança, sem ensaiar. e o calor do forno a tomar-nos os sonhos, os copos num brinde. trocamos passos de dança pela cozinha, sem ensaiar. e tudo ganha sentido, finalmente.