quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

2009

acaba exactamente como começou, contigo. um ano em que aprendi o que é crescer, o que é saber suportar as dores que o crescimento causa (antes, não sabia tão bem crescer ou aguentar). um ano em que tive a certeza que todas aquelas coisas que queremos muito, merecem a nossa dedicação e insistência. merecem, sobretudo, a nossa constante atenção, algo que surge natural, como se passasse a fazer parte da nossa vida. sem diferenças. acaba exactamente como começou e como eu quero que comecem e acabem todos os anos que se seguirem. vou tomá-lo como exemplo. 2009. pode vir o que se segue.

esperar

quase sempre os meus livros do ano são de outro ano qualquer. as minhas músicas do ano, menos, mas também. as minhas pessoas do ano raramente apareceram agora, são pessoas de há muitos anos, de há muitas coisas atrás. sinto-me mais dentro de um período (a minha vida) do que repartido em anos. não faço listas, portanto. espero apenas que as coisas boas continuem a aparecer, a acontecer. é só isso que eu espero.

continuar

o vento continua. a chuva continua. tudo continua. um ano é sempre um ano depois do outro. quase sempre igual. um dia a mais. onde as coisas continuam. continuam.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

bala perdida

como preferias morrer, de uma bala perdida ou por seres alvo de um assassino? uma bala perdida pressupõe uma certa inocência. um certo dia, gonçalo p. conduzia o seu carro e parou no sinal vermelho. na esquina da rua passa a correr um ladrão de ourivesarias. tiros. gonçalo p. morreu. inocente. no entanto, gonçalo p. era também ele um ladrão. de automóveis. várias vezes na sua vida conseguira fugir aos tiros de polícias, de vítimas, de gangues rivais. no entanto, gonçalo p. morreu inocente. como preferias morrer, de uma bala perdida ou por seres alvo de um assassino?

miradouro

dos pequenos lugares vê-se o mundo inteiro. vai pedir ao senhor da grande metrópole para desenhar um mapa de um país longínquo. vai perguntar ao vencedor a geografia do vencido. dos pequenos lugares vê-se o mundo inteiro. quem já perdeu sabe como se preparar para ganhar, ao contrário daquele que ganhou sempre. dos pequenos lugares vê-se o mundo inteiro. o que parece uma pequena janela, é, de facto, o meu miradouro universal.

ideia

roubar ideias até poderia ser fácil, não fossem as ideias dos outros serem tantas vezes complicadas e nos obrigassem a pensá-las antes de as usar. melhor seria se uma ideia pudesse ser repetida sem mais, roubavasse a ideia e já estava, sem esforço, sem invenção, e logo os resultados começavam a ser colhidos. mas não. as ideias dos outros são, tantas vezes, muito complicadas, e nós, que as roubamos, damos por nós a pensar nas ideias dos outros, correndo até o risco de vir a ter ideias próprias, uma chatice, já viram onde é que se vai parar só por se tentar roubar uma ideia?

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

cheiro

ainda assim, a casa é o reduto. estás fechado, a ver a chuva lá fora, uma ou outra pessoa em passo apressado. uma árvore que abana, a porta do café onde alguém fuma. ainda assim, a casa é o reduto. sabes que queres preservar a tua pele, não a conspurcas com um cheiro que não é teu. ao fim do dia é essa a tua conquista. o teu cheiro. o teu cheiro. só teu.

fingir

usas de tudo para fingires-te vivo. e, no entanto, a tua única vida é abrir um livro e deitares-te no sofá. é aí que cresces e te inventas, com liberdade, originalidade, certeza. abrir um livro é a tua segurança, apenas igualável num abraço quente de uma noite. usas de tudo para fingires-te vivo. e, quantas vezes, só tu não o vês.

palavras

vives nas palavras até ao dia em que percebes que as palavras são apenas isso: coisas que se colam nas ideias. chegando a noite, tens frio. podes fingir que aguentas, mas não aguentas. vives nas palavras. até ao dia.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

lugar


se os meus olhos te oferecessem a paisagem da minha infância, não irias reconhecer o terreno baldio, as longas vinhas cheias de uva. irias antes tentar compreender como o vazio se preenche, não de memória, mas de tijolo. se os meus olhos te oferecessem a paisagem da minha infância, o lado de lá do muro, a estrada para o lar onde vivia a avó velhinha, tu ias procurar um homem onde só havia uma criança, ias procurar um qualquer plano municipal onde só havia inocência. se os meus olhos te oferecessem a paisagem da minha infância, tu não irias compreender a cidade, os homens nela, as escavações. porque na ideia ainda tudo está como dantes. e o teu lugar não é o lugar onde os outros vivem; ficou para ser, apenas, o lugar que é teu porque o foi um dia.
fotografia de joão henriques

terra de cesário


o teu segredo é este, se perceberem o teu segredo. para onde quer que te vires, uma árvore, resquício verde da memória, da fortuna. depois, construir. constróis o tempo como te apetece, cheio de incongruências e calamidades. ora uma pequena casa, onde um velho se resguarda da tempestade, ora o enorme edifício, onde a estrada se faz pequena para tanta sede e fome reunidas. o teu segredo é este, se perceberem o teu segredo. uma beleza particular de inesperado.
fotografia de joão henriques

fábrica


não deixes que a tempestade te embacie o olhar: a tua terra continua lá, debaixo de toda a natureza arrancada, debaixo de tudo aquilo que foi excesso e agora é apenas recordação amarga da tempestade. no entanto, a tua terra continua lá. na memória apagada da produção industrial, nos nocturnos adiados do regresso a casa, no homem velho que ainda vem todos os dias da sua aldeia, numa mota famel, até à porta da fábrica, como se nada tivesse acontecido.
fotografia de joão henriques

domingo, 27 de dezembro de 2009

escrever-se

as coisas estão todas cá dentro da cabeça. sinto-as em mutação. dentro da cabeça é onde começam as palavras, as frases, os livros. sinto que se mexem. dentro da cabeça é onde eu estou sem explicação. onde as coisas procuram os seus próprios sentidos. eu fico quieto. apenas sinto. deixo que cada coisa tome o seu lugar, pronta a escrever-se quase sozinha.

amanhecer

amanhece devagar em dezembro, o mar enrola-se no vento e ecoa nos meus ouvidos. alguns passos no corredor dos prédios, um cão que ladra lá fora, um carro que passa. amanhace devagar em dezembro, sobretudo se é domingo, se o café ainda não aquece na cafeteira, se ninguém nos telefona a chamar para o almoço. tento agarrar o telefone e sinto as páginas do livro na mesa de cabeceira. sorrio, só para dentro, de olhos fechados. amanhece devagar, por aqui.

sono

se não souberes que outra coisa lhe chamar, chama-lhe sono. chama-lhe day after. chama-lhr preguiça, cansaço, fim de ano. se não souberes que outra coisa lhe chamar, chama-lhe um nome bonito. um nome que lhe caiba bem. um nome adequado. um nome. um nome qualquer.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

aprendizagem

eu agora também sei de que forma é preciso andar três quilómetros para conseguir, finalmente, falar com alguém da família, sei as asneiras que disse quando vi o pinhal dos casalinhos arrancado e espalhado pela estrada, sei a frustração que é sentir que a natureza é mais forte que nós. agora, resta-nos apenas sentir. e nessa confusão de sensações, saber aprender algo para o dia que aí vem.

comunidade

uma comunidade acorda nos momentos de crise. sente-se a dor partilhada por todos aqueles que percorrem as ruas e olham assustados para as coberturas que voaram, os vidros e montras que se partiram, as sinalizações que foram arrancadas ao chão, as árvores que caíram e se espalharam por toda a localidade. uma comunidade acorda nos momentos de crise. porque sentimos, da pior maneira, que sofremos algo juntos, e o que sofremos foi o medo e o susto daquilo nos estar a acontecer precisamente a nós.

saber

eu sei a quem me abracei esta noite, quando o vento parecia querer entrar casa a dentro. sei a quem me abracei, quem me protegeu e eu protegi, quem quis que ficasse mesmo ali ao meu lado, sem sequer se demover um segundo, um milimetro. eu sei.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

reagir

confundes, confundes os nomes, as frases, as frases, confundes, confundes os nomes, a ideia, as ideias, as ideias, os nomes, os nomes, confundes, confundes, reages, reages, confundes, o nome, a ideia, no plural, na cabeça, no plural, na cabeça, //




e depois ainda são capazes de te perguntar porque vives só por dentro, ninguém sabe que te falta o tempo para encarar a porta da rua se tudo o que se passa dentro de ti, aquilo que só tu vês, é já muito, muito mais do que deverias poder aguentar//

confundes, confundes, reages, reages, reages mal.

cabra cega

a cabra cega repetida mil vezes na cabeça, em sonho/em sonhos, mil maneiras de dizer, melhor, mil maneiras de viver o mesmo momento, os putos e as miúdas do recreio, a cabra cega, a cabra cega repetida mil vezes na cabeça, não o podes evitar, não há como o evitar, dezenas de comprimidos na mesa de cabeceira, noites, noites sem dormir, a tua cara em frente ao espelho da casa de banho, a cabra cega repetida mil vezes na cabeça, mil vezes, em sonho/ em sonhos, sempre o mesmo, sempre o mesmo, sempre sempre o mesmo.

agora

agora, deixa cair, deixa cair, a chuva, a chuva, os medos, de nada te serve detê-los, deixa, deixa cair, lá fora, lá fora, a chuva, os gritos, as lágrimas, os medos, agora, agora, de nada, de nada te serve, tu sabes, tu sabes.

física/sexual

ontem, na mesa do restaurante, a ouvir a conversa da mesa ao lado, a voz da professora, "o que tem a aula de educação física a ver com a educação sexual", e a pensar, eu era capaz de ter uma ou duas ideias sobre o assunto, uma ou duas ideias sobre o assunto.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

amanhã

deixar de saber o que é a ânsia da última noite, do último nascer do sol por entre os estores do quarto, é compensando pela permanente ideia de haver mais amanhã.

protecção

encosta-te a mim e respira o calor do corpo, segue o ritmo da batida do coração, deixa-te dormir, estás protegida, estás protegida.

chuva

tantas palavras sobre a cama e nenhuma que te sirva para explicar a força com que a chuva cai lá fora, enquanto tu nem tens sono, nem vontade de te levantar.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

adivinha

o terreno cheio de poças de água, o carro a avançar, em qual delas o veículo se irá atolar?

império

e depois dás de caras com qualquer coisa de memorável, qualquer coisa que tu sabes que vai ficar na história. não é preciso mais nada, ouves a música e sabes que ela vai ficar. e então tu estacas e deixas-te absorver pelas palavras, pelo ritmo, pelos sons. não é preciso mais nada para completar o sentido. o sentido é isto.

curta

eu sentado na esquadra da polícia de segurança pública e o quim barreiros pedrado a aparecer na televisão, os polícias a fazerem a árvore de natal e eu sem poder dizer nada, o quim barreiros a aparecer pedrado na televisão e eu sentado na esquadra da polícia de segurança pública, as luzinhas a piscar na árvore de natal, tudo tão bonito, tudo tudo tão bonito.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

recado

como um gato caminhando em teu corpo, descobrindo-te toque a toque, eu adormeço a ouvir a chuva lá fora, o vento no mar, a ecoar, a ecoar. talvez te tenha acordado com o meu lento miar, mas senti que nos teus lábios, ainda iria escorregar.

bossinha

os meus pés são portugal, a minha cabeça brasil, o meu abraço o teu regaço, algum dia a encontrar, era preciso procurar a rima certa da canção. os meus olhos são paris, minha boca é nova iorque, transportando a bandeira de tirandentes no stock, já fui lenda de joelhos, já fui marca de reboque, fui versinho de criança, melhor parceiro desta dança. segue na caixa de ritmos, uma outra aceleração, e a palavra que eu procuro é a que faz o refrão. vi-te hoje ao acordar, eras tudo o que eu esperava, não sei se eu já te disse, eras o que eu procurava.

música

antigamente, abria-se a janela e o cenário era um relvado verde desolador, ninguém nas redondezas, uma tristeza imensa em acordar assim, sozinho e gelado. antigamente, a rádio ficava esquecida num canto de um quarto, a chuva entrava-nos pelas paredes, as bocas cruzavam-se desconhecidas. antigamente, no tempo em que cada um era para o seu lado, o rapaz comprou uma guitarra e musicou as suas listas de coisas a fazer na próxima década. a década passou, a música ainda não.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

crítica de poesia

uma daquelas histórias que repito sempre é aquela de eu ter estado sentado numa mesa de um café e ter escrito um poema sobre o facto de estar sentado na mesa do café a ser atendido por uma empregada, que não era uma rapariga loira, mas era uma rapariga de cabelo castanho claro. quando paguei a conta, entreguei o poema à rapariga. ela nunca escrevera na vida e olhou para o papel como qualquer coisa que aquilo não era. no entanto, prometeu colocá-lo na parede do café, onde já antes haviam sido colocados outros poemas, nenhum deles escrito no café nem sobre nenhuma outra empregada daquele café. naquele café, preferiam a poesia que falava das praias, dos mares, das rochas. e a promessa, que era vã, ficou por cumprir. felizmente, penso eu agora, até porque o poema, se bem me lembro, era mesmo muito mau.

rapariga loira

a história da literatura está cheia de escritores sentados em mesas de cafés. a história do mundo está cheia de escritores a trabalhar como empregados de cafés. alguns escritores tendem a ver nos empregados de cafés aquilo que eles poderiam ou desejariam ter sido. principalmente se os empregados forem raparigas loiras.

miopia

em cumpleaños, de césar aira, aparece uma rapariga loira, empregada num café, candidata a escritora. aparece e desaparece. a empregada do café anunciou-se como candidata a escritora por o ter visto escrever. aira põe a hipótese de ela se ter desvendado, apenas, por ser o seu último dia de trabalho. agora, há uma outra rapariga loira a trabalhar no café, mas esta não lhe fala de nada, para além das perguntas e pedidos habituais para estabelecer a relação comercial. foi a rapariga inicial que desapareceu ou foi aira que a deixou de ver? foi ela que lhe disse que escrevia ou foi ele que o imaginou? a miopia é a arte da literatura.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

eterna promessa

começo a entrar na idade de ser a eterna promessa* e já não adio mais a conversa, embrulho-me dia a dia em papel em branco, deixo-lhe a marca, ainda que imperceptível, os dedos gastam-se nas aventuras da cabeça. começo a entrar na idade que sempre esperei, não ter que prometer mais, é fazer ou não fazer, e se passas todo o tempo do mundo em casa, ainda assim, haverá sempre quem te diga na rua, "cuidado, não pises o senhor". começo a entrar na idade de saber como fazer, de não me atrapalhar com as mãos ou com as palavras não treinadas. agora, posso calçar os sapatos de sola, subir a rua, dar os bons dias, enfim, agora posso finalmente começar a gozar o facto de ser a eterna promessa.


* frase de samuel úria, numa das músicas que compõem o álbum nem lhe tocava, que será apresentado amanhã, em concerto, no teatro ibérico.

sangue

quando o tempo está frio, caminhas pela rua, a tua cara fica fria. quando o tempo está frio, caminhas pela rua, caminhas muito, até que a cara fica quente. vermelha e quente. em algum lugar te há-de estar a faltar o sangue.

imagem

a imagem mais bonita do dia de hoje é a visão dos montes e do céu na estrada entre santa cruz e as palhagueiras. quando passam pelas estufas, à esquerda, e os armazéns, à direita, há uma pequena recta. daí, vê-se o céu todo do interior do país, alguns montes a fazer de base. nessa imagem, a mais bonita do dia de hoje, eu vi como é límpido o frio. como tudo fica claro e definido. devo ter, com certeza, sorrido, perante a visão. a visão da imagem mais bonita do dia de hoje.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

sorte

não é a lei de direito que um assaltante tem contra si. é a lei das probabilidades. há uma possibilidade fodida de um assaltado vir a ter a oportunidade de ter o assaltante à sua mercê. num emprego, num tribunal, num encontro casual numa outra rua. é uma mera possibilidade, mas uma possibilidade que o assaltante ignora. e, ao ignorá-la, quando comete o assalto, está a encomendar ao destino a sua sorte. uma má sorte, previsivelmente.

tentativa

uma tentativa de assalto é uma tentativa de assalto. segues pela rua do bairro, dois tipos chegam-se ao pé de ti, pedem-te um cigarro, tiram-te as medidas, perguntam-te se és dali de perto. tu percebes a cantiga e dizes-lhes que o melhor talvez seja que eles desapareçam depressa, porque no bairro, há quem não goste de chatices. eles percebem também e vão embora. depois de uma frustrada tentativa de assalto.

pedido

um assalto é um assalto. mesmo que seja feito em forma de pedido. vais pela rua, é de noite, alguém se aproxima de ti, apresenta-te o currículo (acabado de sair da prisão), fala-te da vida (que não tem onde ficar), as condições físicas (uma das mãos sempre dentro do bolso), diz ao que vem (não quer chatices) e pede-te todo o dinheiro que tiveres. tu dás. não por seres bondoso, apenas porque fostea assaltado.

sábado, 12 de dezembro de 2009

dança

podia ser mais difícil do que aquilo que é, tempestade no mar, tu manteres-te de pé, podia ser impossível mas para ti não, aguentas-te aqui, seguras-me a mão, podia ser, ainda assim, tudo muito complicado, mesmo sem música, dançamos um bocado...

tio é

e mesmo que à tua volta reine o silêncio, tu continuas a bater o pé, os headphones a levarem-te para bem longe dali, enquanto cantas baixinho, "toda a gente diz que o tio é yé-yé, eu quero ser como o tio é", a voar, a voar, até o dia ser de calor, o sol brilhar, mesmo que à tua volta reine o silêncio, mesmo assim.

parentalidade

eu sou do tempo em que pensava ser necessário que toda a parentalidade fosse castigada, sou do tempo em que culpava pai e mãe de todos os males do mundo, do tempo em que nós éramos inocentes vítimas dos erros daqueles dois, até que cheguei ao tempo em que também eu fiquei velho, da idade de um pai e de uma mãe sem filhos, cheguei ao tempo em que puxo uma cadeira e me sento na varanda a ver as pessoas que passam, cheguei ao tempo em que a ternura pelo pai e pela mãe é impossível de controlar, sejam eles culpados ou não, inocentes culpados de tudo o que nos aconteceu, cheguei ao tempo disso, foi o que aconteceu.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

romances históricos - III

no início da década, ele ia muitas vezes à aldeia onde viviam os pais da sua namorada. eles não deixavam que eles se encontrassem ali quando não estava mais ninguém em casa, os vizinhos comentavam sempre que ele tinha o carro parado no pequeno largo. mas com a família presente, o namoro podia desenrolar-se com os costumes preservados. os pais ficavam no andar de baixo da vivenda, a mãe pela cozinha, o pai a arrumar as coisas pela oficina, enquanto ele e a namorada, fechados no quarto do andar de cima, lambiam os corpos e vinham-se, sempre, como é típico das boas famílias, com os costumes preservados

romances históricos - II

no início da década, ele e alguns amigos passavam o tempo no jardim da faculdade de psicologia a fumar uns charros, a dar de comer aos patos, a ler livros que poucos deles compreendiam. preferiam os dias de sol, quando se deitavam na relva e viam, de cinco em cinco minutos, um enorme a avião a passar-lhes sobre a cabeça. quando já conheciam todos os horários dos frequentadores do jardim, passaram a utilizar as horas mais mortas para levarem raparigas consigo. uma delas, sentou-se ao colo dele, abriu-lhe o fecho das calças e puxou-lhe o pénis para fora. ele sentiu um arrepio e olhou em volta, para confirmar que não havia ninguém. ela desceu a cabeça sobre o seu colo e provou-o. ele não reparara, mas um dos professores da faculdade de psicologia deu por, finalmente, bem empregue, o tempo que passava sentado no seu gabinete, a olhar o jardim pela janela.

romances históricos - I

no início da década, ela ficava online no mirc, a desconversar existências com supostos seres humanos do outro lado da linha. era uma idade onde a internet ainda se remetia ao preto e branco, onde uma fotografia valia o que valia, onde um telefone se trocava ao fim de semanas, meses. ela ficava online no mirc e a desconversa levou-a, várias vezes, a encontrar-se com desconhecidos. ao telefone era fácil inventar uma idade, um emprego, tudo o que fosse preciso. mas cara a cara, no parque das nações, a comer um gelado, era impossível esconder os seus dezasseis anos, o seu medo de ter ali, em frente dela, aquele gajo de vinte e três, obviamente desiludido com o resultado das semanas de conversa trocada no mirc.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

fazer

e depois eu digo, há meses que não escrevo um poema. e depois eu penso, todos os dias escrevo mais que um poema. e fico naquela indefinição de perceber o que faz uma ou outra coisa. se serei eu a decidir aquilo que faço ou se são as coisas por mim, decidindo o que lhes parece melhor sem me pedir qualquer opinião.

cabeça

a cabeça alimenta-se de sossego, páginas cheias de palavras, uma música que toque muito baixinho, um bom apoio para as costas. é disto, apenas disto, que eu te tenho estado a falar.

dois

faço a história pequenina, o suficiente, apenas, para cabermos os dois, num abraço apertado, mais nada, nem ninguém.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

nada com pimenta

algumas pessoas não percebem aquilo que lhes dizemos, isso é cada vez mais garantido para mim. vítima de um ataque hemorróidal, uma amiga anuncia, antes do jantar, que não pode comer nada com pimenta. "nada com pimenta". uma frase simples, inteira e clara, muito clara. durante o jantar, apercebe-se do picante na comida. afinal havia uma pitadinha de pimenta no molho, o suficiente para agravar o problema da amiga. a amiga passa-se, não come mais nada, sai de casa a anunciar a quem queira ouvir que cada vez gosta menos de estar com pessoas, raios e coriscos. uma bola no cu dá-nos uma visão muito concreta do mundo, isso é cada vez mais garantido para mim.

ler

custou-me cinco euros, mas foram cinco euros que valeram a pena. no meio de uma revista inteira onde se sucedem artigos desinteressantes sobre os amigos dos amigos, nuno ramos, recente vencendor do prémio portugal telecom, afirma: "li o hume inteiro, no outro dia, num feriado. não entendi porra nenhuma mas aquilo fica". e é tão simples reconhecer que de tudo aquilo que lemos, pesquisamos, aprendemos, a grande parte fica em nós como algo que não conseguimos explicar, mas que transportamos, transportamos para tudo aquilo que fazemos.

enfado

chama-se enfado: caetano veloso, perante a fastidiosa entrevista de inês pedrosa, diz: "é, eu tenho um talento especial para fazer essa coisa que eu faço". e desta forma, sem que a entrevistadora perceba, caetano veloso afirma ser como toda a gente, tem imenso jeito para fazer aquilo que faz, não precisa de o empolar, de o complicar, não precisa de mais nada, apenas fazer "essa coisa" que ele faz. mas a outra não percebe.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

mãe

se alguma vez te faltarem as palavras, lembra-te, desde o início o nosso entendimento existe sem o falar.

gaivota

em frente ao mar, pela manhã, os pescadores largam o fio pela água, enquanto as gaivotas esvoaçam em redor, pousam na areia, esperam que um dos pescados não venha certo e seja deitado borda fora, e a vida lhes ofereça, fácil, a refeição deste dia.

feriado

hoje é feriado e eu não escrevo, faço-me escritor burocrata, cumpro horários, saio da cama e tomo um duche, vou à rua, tomo café, leio o jornal, hoje é feriado e eu não escrevo, se tiver algo a dizer falo, se estiverem longe telefono, hoje é feriado e eu não escrevo.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

lago ohrid III

a última visão são uns longos cabelos cobrindo o corpo. a água que gela todos os poros do desejo. agora sei, ficaste para trás, de volta ao lugar onde nasceste. nascer pode ser isso, pertencer de novo a tudo aquilo que nos pertence. como peças que se descobrem umas das outras, por artes de magia ligadas. a última visão é uma alma quieta, a minha em fuga. saberemos, ambos, encontrar a felicidade. cada um na sua margem do lago ohrid.

lago ohrid II

os pés submersos, no lago ohrid, a maré sobe. a água envolve já um pouco das tuas pernas. tu sorris, como quem volta a casa, como quem diz bom dia. os pés submersos, no lago ohrid, a maré sobe. a sol vai caindo lentamente no horizonte. tu sorris, tu estás em casa, pela primeira vez. voltaste ao lugar dos teus antepassados. abraçaste a taça por onde eles beberam. os pés submersos, no lago ohrid, eu tenho frio.

lago ohrid I

quando a maré baixou, no lago ohrid, voltou a ver-se a luz dentro das pequenas cabanas pré-históricas que hoje guardam os artefactos que pessoas como tu, como eu, usavam para a sua vida diária. imagina, agora, que daqui a algumas dezenas de séculos, o mesmo acontecerá com os pratos onde comemos, com a mesa onde eu escrevo, com os pentes com que escovamos os cabelos. imagina tudo isso, da próxima vez que pisares as tábuas que te levam às cabanas suspensas sobre o lago ohrid.

segredo

eu e tu, em segredo, o teu corpo deitado sob o meu que te domina, as minhas mãos que te prendem e te inventam pelo peito, as nossas vozes que se misturam, que se encostam, que se deliram, as minhas mãos e as tuas, o teu peito, o meu peito. eu e tu, em segredo, o sol quente pela janela, a tua pele e a minha pele e o teu cheiro e o meu cheiro, a tua roupa já esquecida, a minha desencontrada, as minhas mãos, as tuas mãos, as nossas cores por descobrir. eu e tu, em segredo, a tua língua, a minha orelha, a minha boca, as tuas costas, a tua pele e a minha pele e o nosso cheiro, o nosso cheiro, em segredo, eu e tu, o nosso feito.

descer

eu desço até onde nascem os sonhos, os gritos, os cabelos puxados. desço e conquisto a temperatura, o sabor. eu desço até onde correm os rios, os desejos, os gemidos. desço e arrebato a pele, o amor. eu desço e eu desço, até onde começa o nosso encontro, até onde se debate a nossa sede, até onde eu desço e eu desço.

apeteces-me

acordo de olhos fechados e na minha cabeça oiço-me dizer, apeteces-me na boca, de olhos fechados, no quarto escuro, na minha cabeça, apeteces-me na boca, descobrir-te a pele, agarrar-te os cabelos, morder-te o pescoço, apeteces-me na boca, de olhos fechados, de peles coladas, aproximam-se os sexos, apeteces-me na boca, na boca, na boca, em mim.

domingo, 6 de dezembro de 2009

obstáculos

para se poder respirar, seria necessário que entre os pulmões e o exterior nenhum obstáculo se atravessasse. no entanto, a própria palavra atravessasse, cheia de ésses e sibilinitudes (sibilinitudes, outra!), parece obstar ao nobre funcionamento destes órgãos. a palavra e os frios ou os ácaros que te obrigam a espirrar, na ânsia da sua expulsão. para se poder respirar, na perfeição, seria necessário que entre os pulmões e o exterior nenhum obstáculo se atravessasse. mas os obstáculos atravessam-se.

ainda não teoria

ensaiar uma vida ainda não é criar uma teoria. para isso são precisas curvas, inflexões, vozes. para isso são precisas invenções, sangue, suores. ensaiar uma vida ainda não é criar uma teoria. talvez uma palavra fora do sítio a fazer-se nova significado. talvez um olhar incompreendido como um mundo renovado. ensaiar uma vida, não. ainda não.

leitor de poesia

enquanto me perco no sol do sul da poesia de cacela, olho a janela e vejo o vento levantar árvores, a chuva inundar todas as ruas, as pessoas a abrigar-se do temporal. enquanto me perco no sol em mim, dentro de casa, na rua tudo é tempestade. os meus pés quentes dentro dos chinelos, o domingo a fazer-se noite. enquanto me perco na poesia de cacela.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

literatura portuguesa

sabes, ele disse que gostava muito de ti, mas não era verdade. no dicionário dele, gostar muito é apenas uma ponte para te invadir o castelo, como nos filmes sobre história medieval. foi, aliás, numa aula de literatura da idade média que ele te disse isso, entre uma cantiga de amigo e uma cantiga de escárnio e mal dizer. deverias ter percebido que não são sérios os rapazes que se declaram em aulas de literatura portuguesa I (da universidade clássica, o mesmo se poderá dizer dos rapazes que se declaram em aulas de literatura portuguesa III na universidade nova de lisboa). ainda assim, tu acreditaste. acreditaste que era possível o amor entre o mofo dos cancioneiros, entre os professores que metem piadas sobre o benfica entre os poemas e que falam muito bem de cineastas portuguesas que desistem dos filmes a meio. acreditaste, o suficiente para ires para casa dele no fim das aulas e te deitares na cama, semi-despida, entre os beijos e as mãos ávidas que ele te dedicava. só não acreditaste o que chegasse para ele te foder. quiseste guardar-te para um dia especial e isso, não há literatura portuguesa que aguente, tanta tesão assim desperdiçada.

todos os dias do verão

um verão inteiro a visitar-te para te olhar as mamas. um verão inteiro. ele fazia sempre o mesmo, logo após a hora do almoço, entrava na loja e dava uma volta pelas prateleiras, pelos expositores. foi logo no segundo ou no terceiro dia que ele te fez algumas perguntas avulsas sobre os livros. percebeste que ele podia estar ali para muitas coisas, mas não para comprar livros. mas todos os dias ele voltava, todos os dias do verão, para te olhar as mamas que o regalavam a sair do decote. a sua presença, um tanto inadequada nos primeiros dias, tornou-se habitual, quotidiana, agradável, quase. foi por isso que, apesar dele ter como único intuito olhar-te as mamas, tu sentiste a sua falta, no primeiro dia de frio deste ano.

engolir

quando engoles, dói. a dor é fogo, a garganta a arder. dói porque sabes, exactamente, aquilo que te magoa. sabes exactamente que sempre que ele aparece à tua porta, deixas que ele se sente no teu sofá, que fale da vida dele que pouco te interessa ( e que nunca recordas quando não estás com ele), que te vá inspirando alguma tristeza todo aquele seu abandono, até ao ponto que sentes que a única forma de o compensar ( e de o calar, também), é abrir-lhe as calças e engolir o pénis que pressentes duro. nunca pensaste como é que é possível que esta ladaínha que ele cria, sempre que te visita, o pode excitar. será, talvez, o acto reflexo de quem já sabe o que vai acontecer. tu também sabes, por isso te dói. dói, quando engoles.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

ela

e ela debatia-se insanamente para se soltar do invisível que a prendia, gritava, gesticulava, batia com os pés, mesmo que nada a prendesse, nada a magoasse, nada que se visse, pelo menos. ela continuava a debater-se, a debater-se, e os outros, os que não viam, pensavam que se debatia consigo mesma e diziam-lhe, em mensagens, que não se preocupasse, que isso a nada a levaria. no entanto ela não parava. e os cabelos estavam despenteados, os olhos muito abertos, os lábios brutalmente separados e escorrendo saliva. e os outros eram ainda mais incapazes de compreender o que se passava com ela.

faca

a faca de peixe não corta carne, mas separa meticulosamente o agredado de massas e fios de bacalhau guardados dentro de uma patanisca. a faca de peixe não corta a carne, mas serve à partição dos bróculos. é um poder ilusório, mas eficaz. sentes que aquilo que seguras em tuas mãos serve os teus objectivos, mas sabes já que com ela não cortarás a carne, não será uma faca, quando precisares de uma.

memória

o olhar no olhar, mal entraste pela porta, o olhar no olhar e a dúvida a invadir toda a memória em busca do lugar, da situação, onde aquele olhar acontecera uma outra vez, o olhar no olhar, o restaurante cheio, caras e caras desconhecidas a descarrilar conversa sobre as mesas e a memória infectada e dormente, em busca, em busca, em busca de um momento que talvez nunca tenha acontecido.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

adivinha

se eu te digo o que imagino ao olhar, também já sei que o que te digo te faz pensar. e por isso repito, muitas vezes, sem reparar, que aquilo que penso esconder, muito rápido faço por revelar. se eu te digo o que imagino ao olhar, também já sei que o que te digo te faz lembrar. e por isso repito, tantas vezes, sem ignorar, que aquilo que penso esconder, muito rápido faço por revelar.

brancas

brancas brancas, que vos quero brancas, sólidas, suaves, descobrindo-se aos poucos, os meus dedos setas, os meus dentes ávidos, língua, saliva, amanhecer perpétuo. brancas brancas, que vos quero brancas, as coxas cheias de prazeres ínfimos, os cheiros mais quentes, as peles mais húmidas, língua, saliva, escura noite feita luz. brancas brancas, que vos quero brancas, plenas doses de intimidades loucas, ambas as bocas beijando-se em fúria, gemidos soltos, gritos eternos.

rosas

não fazemos cama das rosas que nos ofereceram esta manhã, fazemos antes a dança tribal de aproximação, beberagem incediária os fluídos dos nossos corpos. não fazemos cama das rosas que nos ofereceram os jardins, recolhemo-nos por entre a vegetação e são os teus dedos que deslizam sobre o vestido que mal te cobre. os dedos compridos arrastam-se pelas coxas, o olhar torna-se animal selvagem. não fazemos cama das rosas que nos ofereceram esta manhã. dos nossos dentes pendem folhas mastigadas.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

desenho

e depois desenha-se o corpo como um resumo da noite inteira, passar as mãos pela tua pele e ser mais perto, observar todas as marcas da almofada, dos colchões, e todos os pequenos resquícios da minha barba em ti, como um caminho calcorreado lentamente, a chegar a cada ínfima nota de prazer, que é o encontro de nós dois neste desenho.

cinzento

o céu cinzento abranda os nossos passos se chegamos perto do mar, alguém diria o vento ou a água projectada de encontro aos nossos lábios. alguém diria o vento ou a vontade de voar, mas era o céu cinzento, a noite agora em dia, pelos céus, a abrandar os nossos passos já tão lentos.

manobra

tinha os dedos cheios do teu cheiro e era ainda de noite debaixo dos lençóis, a minha boca a pedir a tua boca, os olhos fechados, o calor da tua pele, e era ainda de noite debaixo dos lençóis, tinha os dedos cheios do teu cheiro, do teu cheiro, do teu cheiro.