sábado, 11 de setembro de 2010

glicínios

faz o meu texto durar - faz, faz, faz.
eu arranho lentamente a cabeça com que adormeço na almofada limpa. eu arranco os pêlos do nariz e sorrio na televisão que é o teu olhar intrometido. eu chamo quem não ouve. os gritos limpos, os passos abertos no corredor do prédio. envio-te mensagens que não dizem nada - não fala nunca o tamanho da palavra.
faz, faz o meu texto durar.
os olhos arrancados do urso de peluche, a penúria ignóbil deste almoço que ainda não mastiguei. os carros que aceleram sobre as passadeiras de peões. as palavras duras dentro de água quente. a faca de cozinha, o supermercado, a dor quotidiana. cortei-me a fazer a barba, cortei, e desconheço ainda todas as implicações deixadas pelo testamento dos mortos familiares.
por isso te peço, que dure, que dure - faz.
não sei ainda quantas vozes se poderão dedicar à límpida rispidez de polir as maçãs do rosto. nem será nunca enquadrada em mim a leve tentação de te retirar do embrulho em que te ofereceste. eu arranho lentamente a cabeça com que adormeço na almofada limpa, eu sou a máquina de lavar, o amaciador, o pára-choques. restos de mim descansam na auto-estrada, esta não é uma carta de despedida.
faz o meu texto durar.