sexta-feira, 30 de abril de 2010

Uma palavra para o Maio

No início de Maio de 1886, realizou-se uma manifestação de trabalhadores em Chicago, com o objectivo de reivindicar a redução da jornada de trabalho para 8 horas diárias. Nessa manifestação juntaram-se milhares de pessoas, dando início a uma greve geral que se prolongou pelos dias seguintes. A 3 de Maio, um pequeno levantamento levou à morte de alguns manifestantes, devido a carga policial. No dia 4 de Maio, uma nova manifestação de protesto pelos acontecimentos do dia anterior, levou a que a polícia disparasse sobre a multidão, originando doze mortes e dezenas de feridos. Este período ficou na história como a Revolta de Haymarket.

Em 1889, a Internacional Socialista decidiu convocar uma manifestação anual pela jornada de 8 horas de trabalho. O dia escolhido foi o 1º de Maio, em homenagem aos trabalhadores mortos em Chicago. Esta data foi adoptada em todo o mundo como o dia do trabalhador. Em alguns países, a data foi declarada como feriado nacional, noutros, a data foi ignorada e marcada por repressão de estado sobre trabalhadores manifestantes.

Em Portugal, o 1º de Maio só começou a ser comemorado livremente a partir de 1974. Esta data marcou sempre a luta dos trabalhadores, como um dia em que são lembrados os seus direitos e reivindicadas melhores condições de trabalho.

Em 2010, Torres Vedras festeja o 1º de Maio com a realização de uma Feira Rural e com a abertura de todo o comércio tradicional local. O mesmo deverá acontecer em vários outros locais do país, do mundo. Porque é sábado (e ninguém se lembra que é feriado a um sábado), porque é véspera de Dia da Mãe (e as pessoas têm que comprar, comprar), porque estamos a passar uma crise económica (ao menos se preocupasse o mundo com as crises de valores um quarto daquilo que se preocupa com as crises financeiras).

Em 2010, líderes sindicais dizem, para quem quiser ouvir, que “já ninguém sabe o que é uma canção de intervenção”. Em 2010 já tudo é normal e aceitar, porque “assim tem que ser”. Cedemos tudo. Cedemos os direitos, os deveres, as responsabilidades. Cedemos a memória, a coragem, a voz. Cedemos tudo. Vamos continuar a ceder, diariamente, mensalmente, anualmente, porque é o futuro, a modernidade, porque se trata de novas questões que a civilização ocidental enfrenta, pelo que seja. Haverá sempre uma boa razão (sempre houve) para nos esquecermos do nosso papel no mundo.

Resta saber se, quando finalmente sentirmos que o nosso papel não nos convém, ainda estaremos a tempo de reivindicar um outro.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

baile

soltem-se dos lugares, venham à dança. partiremos para a utopia participativa, onde cada um será aquilo que quererá ser. um festival de beleza, um abraço de eternidade. soltem-se dos lugares. venham ao baile. ao baile. ao baile.

boys will be boys

o fascismo é o novo fascismo, repete-se durante a violência da exposição radical de tudo aquilo que nos fere as mentalidades e nos corrói as tradições. o fascismo é o novo fascismo, a ditadura é a nova ditadura, a propaganda é a nova propaganda. os manipuladores serão os manipuladores. boys will be boys.

navio

já partiu o navio, já partiram as preocupações com a entrada e a saída das pessoas no texto: é assim quando se escreve para ser dito, para além das palavras temos que pensar nas pessoas, as pessoas que estão dentro e fora do que escrevo. mas agora já partiu o navio, lá vai ele, ao longe, pronto a ser visto por toda a gente.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

escrita

nenhuma das imagens consegue explicar a simplicidade com que caminhas e voas sobre os olhos de todos os homens com que te cruzas. nenhuma das imagens é melhor que tu. continuas sentada, sozinha, à espera que alguém te envie uma carta, um sinal. ignoras todos os sorrisos e convites que te façam cara a cara. nenhuma das imagens consegue explicar o vulcão que provocas com a tua simples presença. ignoras como és desejada, como sobrevives nos sonhos nocturnos de tantos. preferes continuar à espera, sozinha, por uma carta, por um sinal. uma palavra escrita, uma palavra escrita.

força

nada tem mais força do que a palavra muitas vezes repetida no ouvido, no ouvido, no ouvido, no ouvido. nada tem mais força que a semente que é plantada no olhar, no olhar, no olhar, no olhar. nada mais. nada mais.

bíblia

aprendes assim a reclamar contigo mesmo a origem de todos os pecados e, se encontras nas minhas palavras algo de um sentido bíblico que abominas, talvez seja bom saberes que também aí, no texto original, já alguém caminhava como tu, pensando estar nos limites da inocência, quando estava já destinada à máxima depravação.

terça-feira, 27 de abril de 2010

ideias para mudar o mundo - 3

chegar ao momento em que já se desistiu de ter ideias.

ideias para mudar o mundo - 1

atirar a matar e soprar a ponta dos dedos.

ideias para mudar o mundo - 2

dançar, sempre, sempre, dançar. até que a música acabe connosco.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

um resultado

todo o discurso é uma deformação de si próprio. perante o objecto, tanto podes assistir à evidência como à sua negação. todo o discurso é uma mutação. uma mutação.

uma teoria

só a exposição total do fascismo poderá alimentar um anti-fascismo necessário para combater o novo fascismo.

uma experimentação

encenar o neo-fascismo em forma de amálgama de nações.

domingo, 25 de abril de 2010

momento

no momento certo saberás quando despir as roupas. no momento certo saberás quando encenar o orgasmo, a morte, o desejo. no momento certo saberás, ainda, que esse é o momento certo. talvez os nervos te impeçam a acção. talvez o sol te impeça de ver.

livro

cruzei o livro das regras à procura de um sentido para os corpos que fomos transformando pelo caminho, mas até o livro é omisso. cruzei o livro com o olhar e nada, nada me satisfez. era o que ainda tinha ficado por dizer nas nossas bocas inteiras e fechadas.

sentença

não, não volto a dizer nada que se possa colar sobre os dedos sujos de quem come com as mãos, afinal eu gosto das coisas como elas são, sem mais nem menos. também não vou acrescentar nada mais ao que já foi dito, a cada um cabe o gesto que escolheu. podes encarar isto como uma sentença.

sábado, 24 de abril de 2010

tempo

não tarda muito, estaremos todos de bracinho no ar, cara sorridente, saudando os líderes. não tarda muito. e enquanto tarda, eu levanto o braço e gozam-me. gozam-me porque me acham de outro tempo. outro tempo, sim, o do passado futurível. porque a mim não me apanham no futuro passadista. não me apanham, não.

desce pela avenida

amanhã um país desce pela avenida. um país. não todo o país. cresci a ouvir assim, o vinte e cinco de abril não foi bom para todos os portugueses. depois alistei-me do outro lado e, a medo, repetia-se o mesmo. o vinte e cinco de abril não foi bom para todos os portugueses. havia os maus e os bons. e depois quiseram dizer-nos que era tudo o mesmo, bons e maus, portugueses e angolanos e moçambicanos e guineenses e caboverdianos e sãotomenses e timorenses, tantas palavras inauguradas para o que antes se pensava ser uma coisa só. quiseram-nos deixar colada a etiqueta dos portuguesinhos de sempre, bons e humildes. o tanas, meus amigos. o tanas!

fragmento

começo a perceber melhor o fragmento deixado dentro da cabeça. não é uma bala, nem um pedaço de vidro. é uma semente. uma semente que se transforma com o crescimento da própria cabeça. a determinado momento, o fragmento já não é fragmento, porque igual. é uma parte do todo. pertence ao conjunto. começo a perceber melhor.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

poema

repercute no ar, o ar que vem de dentro, a cada página que se vira.

dizer

hoje o dia é de dizer. de manhã à noite. dizer o livro no seu dia. dizer.

livro

inaugura a palavra na boca. mais que um beijo.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

penso rápido

procuro um penso rápido para estancar as minhas ideias dentro de mim. não quero que saiam pelo sangue, pela saliva. não quero que as ideias se percam em beijos ou espirros. procuro um penso rápido para organizar o pensamento.

saída

talvez tenha saído de mim por aquele fio de sangue que me ficou no pescoço, logo estancado com os dedos. talvez tenha essa ideia ainda nos dedos, se ela ao menos resistisse ao sabão do banho. talvez tenhamos que ter todo o cuidado quando guardamos alguma coisa dentro de nós. a qualquer oportunidade, ela vai sair, desaparecer. mesmo que não tenhamos vontade que isso aconteça.

corte

o que eu ia escrever, entretanto, saiu-me da cabeça. ontem à noite estava mesmo ali, debaixo da língua, e não o escrevi no telemóvel porque achei que não me ia esquecer. no entanto, hoje, só me lembro do corte na face, ao fazer a barba. é só disso que me lembro. e não daquilo que eu ia escrever.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

perfeição

não é bem uma questão de ser fácil, de ser perceptível ou evidente. não é bem uma questão de ser passível de ser construído um sistema com todas estas referências. vais aglutinando factos, técnicas, opções. mastigando as poucas coisas que te parecem certas em cada livro que lês, cada acção que vives. depois, depois é esquecer, adormecer-te o suficiente para que, num lampejo antes do sonho, perceber que uma frase perfeita é possível de encontrar.

atordoamento

a mão finge-se presa e não se atira logo às letras que existem para compor a palavra. a mão finge-se e a cabeça esforça-se por a fazer funcionar. no entanto, falha. a cabeça esforça-se e falha, de novo. e é no momento em que quase se desiste, que a mão renasce e escreve. a cabeça atordoada ao vê-la escrever, a mão avança por palavras e frases, textos inteiros. e é esse atordoamento que compõe o poema.

regresso ao acidente

tantas vezes tentamos não compreender o que nos acontece, porque é mais agradável passar ao largo do que sentir os pés presos na parte mais pantanosa do rio. tantas vezes optamos por ficar sossegados, sem arriscar, que nos esquecemos até do que é que a vida é feita. e nesse esquecimento, acabamos por ser surpreendidos por leves espasmos do coração, quase exigindo, um regresso ao acidente.

terça-feira, 20 de abril de 2010

explosão

viver como se uma bomba te fosse explodir nas mãos, a qualquer momento. não é o medo, é a tensão. viver como se a bomba estivesse à tua espera, pronta a rebentar. nada do que faças impedirá a explosão. apenas sentes que saber dela antecipadamente te dá alguma vantagem, mesmo que não a saibas utilizar nesse momento.

vai acontecer

antes do acontecimento, o corpo apresenta os humores do dia. sais da cama a saber se o dia será bom ou mau, consoante os tremores que te tomam. uma leve incomodidade cresce-te nos músculos no caminho que percorres todas as manhãs. ainda não aconteceu, tu já sabes.

sinal

deixa estar. o lirismo não se paga a si mesmo, necessita sempre de um intermediário do lado de lá da página. deixa estar. a cidade hoje tem demasiados ruídos, demasiados obstáculos. eu estou inteiro, como um bloco, incapaz de modificar os gestos primordiais da língua.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

paisagens

para quê destruir o que foste incapaz de construir? deixa-a sair. não uses as cordas, as algemas, não lhe apontes a pistola, a faca, deixa-a sair. para quê a raiva? para quê a utilização desse poder sobre o fraco corpo da antiga amante? não te perguntes, deixa-a sair. não te lembres, deixa-a sair. arranca os olhos, se não a quiseres voltar a ver. mas fica a saber isto, apenas isto. depois de uma paisagem, outra paisagem chegará.

fuga

aqueces os músculos da locomotiva, ainda é cedo, sorris-me ao ouvido, ainda é cedo, baralhas as cartas, ainda é cedo, e promoves o choque de vagões no túnel da entrada da cidade. tu sabes, tu decides. e ainda assim, há quem fuja, quem insista a fugir, de ti.

segurança

tu não és a segurança, o teu olhar não pode decidir. assistes, da central, à sucessão de repetições dos lances capitais disputados na cidade. gravas e regravas ruas, pessoas, contactos. no entanto, tu não és a segurança. a segurança está longe, bem longe daqui.

domingo, 18 de abril de 2010

explicação

não vais conseguir explicar porque escreves ora no papel, ora no teclado do computador. vinhas para casa com o poema a nascer-te na cabeça e sabias que seria do papel. sentaste-te no sofá, sem nenhum outro som, escrevendo o poema no caderno. depois, só depois de terminado, te levantaste, ligaste a televisão, falaste aos familiares, chegaste ao computador. abriste-te ao mundo, ao mundo que existe, não aquele que tentas recriar no papel. não vais conseguir explicar, sequer para ti, porque o fazes assim, como um ritual, como um ritual que não repetes, apenas tentas inventar a cada passo. como uma necessidade. como um poema.

soltar

trocas os nomes dos objectos, das plantas, dos animais. novos nexos reencontram-se na tua voz calada, numa viagem de carro, num passeio a pé. basta ficar sentado num lugar para percorrer o mundo inteiro. basta isso. se estiveres suficientemente solto daquilo que te ensinaram ser, à força, a realidade.

ver

o que tu vês, não é o que existe, é outra coisa. o que tu vês é um pequeno atalho para que nasça, na tua mente, a combinação delirante das palavras. e o que não tem qualquer sentido encontra, afinal, um lugar para ser.

sábado, 17 de abril de 2010

isto é uma geração

o que tenho na cabeça terá ele no corpo todo. e gasta-se, ano após ano, em busca de qualquer coisa que já perdeu até o sentido. entre a memória da adolescência e a tentativa de consciência de um agora, em ruptura consigo mesmo, com a ideia que terá de si mesmo. o que tenho na cabeça terá ele no corpo todo. e nesse caminho a algo tão provavelmente incompreensível para toda a gente, eu (e os outros como eu) começamos já a ser os velhos que vão ouvir a voz da sua juventude. para ali, eu olho como um presente radioso, enquanto outros saem da sala a correr, ainda antes do encore. o que tenho na cabeça terá ele no corpo todo. isto é uma geração.

pensamento durante o concerto

de tanto procurarmos o novo, esquecemos o que é eterno.

foge foge bandido

encontrei-o ontem à noite, no palco. está mais calado, mais escondido. é agora um perseguidor do instrumento, da música, do som, e não tanto da palavra. aqui e ali rompe em canção perfeita. e depois regressa à experimentação. a banda segue em palco como se estivesse ainda na garagem, em pleno ensaio. encontrei-o ontem à noite, mais uma vez, no palco. comprovando que será eterno.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

dominar o mundo

por muito pequeno que seja, o mundo dentro do teu coração. por muito desconhecido, o mundo das paisagens, dos desertos. por muito agreste, o mundo das tempestades. por muito quente, o mundo dos fogos. por muito inútil que pareça uma palavra. a poesia vem para dominar o mundo. dominar o mundo. para sempre.

a poesia

e toda a sala se cala para entender o que uma só voz transforma em dezenas de imaginações que cada pessoa guarda dentro da cabeça. e toda a sala se cala e iluminam-se os cabelos. o sangue percorre mais depressa todas as veias quando se a ouve.

vem

vem das profundezas da imaginação, de onde a vida ainda é só começo e nenhuma batalha grande ou pesada demais. vem das profundezas da memória, dos lugares que todos os outros já esqueceram, de vistas que mais ninguém percebeu no momento em que lá passou. é uma viagem ou apenas um caminho que se faz, sobretudo, sozinho, por muitas boas companhias que se vão encontrando. vem das profundezas do corpo, das profundezas de tudo. e sai-nos pela boca e pelos dedos. com os olhos a brilhar.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

espera

sento-me na cadeira deixada à beira da estrada. passam poucos carros, agora. nenhuma voz, nenhuma máquina. sento-me na cadeira. o tempo pesa-me nos ombros e eu dispo o casaco. engano-me sempre na medida das coisas. espero, apenas. apenas espero.

mapa

digo-te ainda: de onde estou não me vejo, não me é clara a minha posição. e sinto que qualquer indicação de lugar é apenas uma ficção, qualquer coisa que podemos criar. tu situas quem quiseres. tens esse poder nas mãos. eu apenas sei dos meus erros de localização.

remédio

digo-te agora: pouco sei desses excessos de linguagem com que remedeias os dias mais pesados. e não, também não me encontro em condições de explicar todas as instruções do que deve ser feito com o remédio em causa. um copo de água, o comprimido. tudo o resto é saber esperar.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

teste

um teste à paciência, ver crescer aquilo que plantamos. um teste à paciência, até que surge a primeira ponta de erva sobre a terra. um teste à paciência, até que um dia a terra se revolve e sabemos que algo nasceu. um teste à paciência ultrapassado com sucesso.

pequeno

tantos dias em que ficar calado teria sido uma opção. tantos momentos em que não pensar teria sido melhor. tantos meses em que nada andou para a frente, sequer para trás. tanto tanto tempo que parece desperdiçado na paragem das coisas. e depois perceber que todos os minutos são investimento em algo. no reconhecimento, no saber, no aprender. todas as coisas são muito pequenas. muito mais pequenas do que aquilo que nós próprios imaginamos.

não gosto

não gosto de leituras pela metade. não gosto de quem acha que tem uma ideia consistente sobre algo após a primeira linha. não gosto de quem não acredita que tudo pode mudar, as coisas evoluir. não gosto de ideias paradas. não gosto.

terça-feira, 13 de abril de 2010

um pouco de sol

ainda assim, apesar das promessas de trovoadas e aguaceiros, abro a janela e deixo o sol entrar. um sol tímido e fresco, a brisa vinda do mar sobre a testa. vejo o sol e penso que hoje não será um dia triste. não. hoje será um dia cheio e completo, como se querem os dias. um dia de vinte e quatro horas em que conseguimos agrupar dentro delas todas as coisas que temos e que desejamos fazer. vejo o sol e acredito um bocadinho mais na primavera, nos homens e nas mulheres, nos pássaros, nas leis, nas possibilidades. assim não há como nos esconder no escuro. ainda assim.

vizinha

disseste-me no outro dia, as coisas mais tristes são como os parques infantis em dias de chuva. tanta cor vazia de expressão, tanta cor ainda mais evidenciada pelo escuro do céu. as coisas mais tristes são assim, como possibilidade de felicidade que ficaram goradas. sofremos sempre por comparação. sempre por comparação.

comunidade

cada manhã é uma viagem de carro que eu tento inventar diferente. cada manhã. acordar ao teu lado e não querer sair da cama. tentar esquecer o dia que se segue a esse momento que queremos prolongar. cada manhã é uma viagem de carro, o mesmo cenário, pessoas que atravessam a estrada e me agradecem por parar na passadeira. toda a nossa cordialidade fosse essa, a de cumprimentar quem cumpre os regulamentos. cada manhã é uma viagem. ponto final. sempre com novo parágrafo que se segue. como na escola primária, começar a escrever mais perto do meio da página. e ter quem nos agradeça esse acertar tão simples. tão tão simples.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

listas

não adianta nada fazer listas de palavras. não adianta nada procurar um sentido para as coisas. não adianta nada conversarmos com as irmãs, as tias, as vizinhas da casa. não adianta, não adianta. não adianta a beleza, a delicadeza. não adianta nada. listas de palavras.

exemplo

para exemplo eu dizia-lhe segunda-feira. manhã curta, confusão na entrada da cidade. para exemplo, só. mas ela elaborava segundas-feiras em catadupa pelos olhos, como se chorasse, dramática. eu repito, baixinho, já só para mim, era um exemplo, era um exemplo. cansaço.

compreensão

eu dizia-lhe um poema, um poema independente da forma. eu dizia-lhe um texto, palavras atrás de palavras, com uma ordem não fixa. eu dizia-lhe, dizia-lhe várias vezes, para que ela compreendesse. na esperança de que sim, isso pudesse acontecer.

sábado, 10 de abril de 2010

ruas

podia dizer assim, eu que nunca fui a miraflores. mas fui. fui e conhecia até algumas das ruas de que fala o joão borges da cunha. nunca lá fui criança, nem nada que se parecesse. mas pensava que miraflores eram só umas ruas. só umas ruas que crescem nos livros, neste livro, digo eu. o mundo talvez não esteja para esta coisa de gostar de livros que não são de hoje. mas eu era capaz de pensar que este é um livro para todos os dias. para encontrarmos, uma vez mais, miraflores. mesmo que nunca lá tenhamos ido.

amor global

no joão borges da cunha encontro esse amor pelo local que é um amor pelo mundo inteiro. transformar o seu pequeno bairro no centro de um mundo literário é o sonho de muitos escritores. o joão consegui-o no primeiro livro. agora que tenho este, vou começar a procurar pelo segundo.

amor de miraflores

li-o há alguns anos, num exemplar encontrado na biblioteca municipal de torres vedras. desde aí, não deixei de o procurar por todo o lado. livrarias, bibliotecas, feiras do livro. cheguei até a falar com responsáveis da editora que, por ter mudado de donos, nada sabiam sobre este livro. até que ontem, na minha própria livraria, onde estou todos os dias, ao passar junto a uma prateleira, o encontrei. esteve ali, esteve sempre ali, desde 2007, no núcleo de livros impossíveis de devolver pela anterior proprietária da livraria. amor de miraflores, de joão borges da cunha, um autor de que nada sei, nem a internet adianta muito. o que sei é que hoje o tenho aqui em casa. finalmente, anos depois, tenho este livro. o livro que já não existia.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

discurso sobre a ética

li isto ontem à noite, no diário volúvel do enrique vila-matas, e percebi logo nesse instante que era este o meu presente para ti. a história é curta. num debate televisivo entre catherine ringer (vocalista da banda rita mitsuoko) e serge gainsbourg, ringer vai provocando gainsbourg com histórias do seu passado de actriz porno. gainsbourg diz-lhe que ela é uma puta, enquanto ringer lhe explica que ser actriz porno faz parte da "aventura moderna". aí, um gainsbourg tomado pelo álcool (e sabe deus por o quê mais), exclama:
- a aventura moderna não é repugnante. nós temos ética.
nós temos ética. li isto ontem à noite e ficou-me a ecoar no espírito, que raio de ética é esta que nos leva a sentir orgulho daquilo que fazemos. seguramente tem algo que ver com aquele texto que li, há umas semanas, em vila do conde. aquele que marca a diferença entre quem percebe de quantas coisas é feita um poema e quem pensa que tudo precisa de um documento regulamentar. mas sinto que é mais do que isso. talvez seja aquela ética que nos faz colocar a nossa cara, o nosso corpo, a nossa alma, em todas as coisas que fazemos. uma ética que torna inseparável a nossa arte de nós mesmos, fazendo tudo parte de um grande argumento que insistimos em que desbloquear de cada vez que enfrentamos uma folha ou uma tela. há, também, uma outra ética, uma ética que nos faz pensar no nosso trabalho de uma forma a que ele possa ser explicado a todas as pessoas que o tentarem perceber.
somos gente séria, é essa ética que eu sigo. somos gente séria e que acredita que aquilo que fazemos pode, de alguma forma, mudar o mundo das pessoas que tocamos. podemos mudar o mundo com uma palavra, com um gesto, com uma imagem. e também podemos mudar o mundo com um incentivo, com uma palavra carinhosa, com um olhar. isso, um olhar apenas e quantos mundos se alteraram devido a isso. a ética que sigo também tem um pouco desta inocência aparente de achar que todas as coisas são simples. mas volto atrás e sublinho, inocência aparente. como se fosse preciso um certo sossego para preparar o vulcão que nos sai dos dedos. como se fosse preciso um certo sossego para armadilhar os livros e as exposições em todos os lugares do mundo.
vou a meio do caminho e não me perdi (mesmo que seja isso o que pareça estar a acontecer). digo-te então, ficou-me a ética a ecoar na cabeça. a consciência de que tudo tem um preço e que, perante esse preço, cabe-nos a nós decidir se estamos, ou não, dispostos a pagá-lo. a consciência de que aquilo que fazemos tem, para nós, uma importância vital e que não podemos que isso choque com as nossas outras necessidades de comer, dormir ou respirar. a consciência de que só podemos ser vítimas do nosso cansaço e de que ficar cansado ou parar não será nunca uma solução. a consciência de que, já que somos assim, é assim que vamos ter que continuar a ser.
foi por isto que percebi, logo naquele instante em que li a história no livro do vila-matas, que este era o meu presente para ti. não sendo um presente que podemos usar ao peito, é seguramente um presente que poderás guardar no peito, na cabeça, onde quiseres, e exibi-lo feito teu em qualquer ocasião. é seguramente um presente para que fiquemos a pensar, eu e tu e todas as pessoas que o lerem, que até as coisas mais simples e pequenas precisam de ser repetidas de quando em vez. isto é utopia? isto é infantilidade? deixai os crescidos pensar o que quiserem. pensemos nós nas coisas como sentimos que elas devem ser pensadas. e talvez possamos repetir, como gainsbourg, "nós temos ética". nós temos ética.


para a isabel lhano

quinta-feira, 8 de abril de 2010

matar

na folha manchada de tinta, sangue e vestígios das ramagens, sobra um corpo esquartejado. cai-te a catana da mão, a tua respiração ofegante, os teus olhos muito abertos. escreveste um poema. mataste alguém. tudo em tua volta é sujidade, excremento. mas na folha, a mancha ganha contornos de beleza. escreveste um poema. mataste alguém.

sangue

não é só mato que atinges quando desces a catana sobre a folha em branco. algo te espirra na face, libertando-se cheiros que te envolvem a existência, como se a roubassem. não sabes o que pensar, pressentes movimento, o pulso enfurece-se e atiras-te a cortar ferozmente o mato, o cheiro, o corpo. quando paras, há sangue vivo no teu poema.

treme

treme-te na mão a catana ao entrares pelo mato que é a folha em branco. ramagens abordam o teu corpo como bichos, o cheiro azedo e a aspereza do ambiente fere-te os olhos. treme-te na mão a catana, suas em bica, murmuras palavras sem sentido. a folha em branco fere-te, entontece-te com seus venenos. treme-te na mão a catana, mas ainda te resta firme o pulso.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

distraído

o suicida guarda as palavras dentro de si, os vivos preferem pensar que sempre está tudo bem. caminhamos assim, sobre as cabeças dos que vão morrer, preferindo pensar que se alguma coisa de mal se passasse, o suicida nos chamasse. é para isso que temos telefones, que estamos online, não é? caminhamos assim, sobre os dedos dos que vão morrer, preferindo pensar que se alguma coisa de mal se passasse, seria bem evidente aos nossos olhos. vamos distraídos, sempre distraídos, esperando que a vida nos mantenha vivos, apenas isso.

falar ou responder

porque o suicida não começa no mergulho ao rio. começa em casa, na escola, entre os amigos. talvez no caso em que foi parar ao hospital há dois anos atrás. e agora o pai diz: se ele falasse. será que precisava mesmo de falar? ou precisava que lhe perguntassem?

vivos

uma criança morreu. fazer um inquérito com trinta e oito testemunhas é um exagero. é, logo à partida, esperar que a culpa não seja de ninguém. uma criança morreu. suicidou-se, tudo indica. e ninguém pensa no que poderia ter feito para o evitar, antes preferem atirar responsabilidades para as costas dos vizinhos. os vivos preferem sempre encontrar uma forma de continuar a viver. mesmo que pendurados em cima das costas dos mortos.

terça-feira, 6 de abril de 2010

agora

e agora façamos um poema que nasça do barulho das nossas vozes misturadas. um poema que nasça das mãos dadas, de beijos trocados. um poema que nasça dessa tentação de sermos próximos. um poema que nasça dos nossos poemas mal interpretados. um poema sem tempo, sem lugar. um poema material. um poema à distância. um poema só desejo, um poema só inocência. e agora façamos um poema que nasça de todas estas coisas que nos ligam e nos afastam. um poema inteiro, que se ofereça ao mundo.

frases

ela não usava uma picareta, usava as pequenas pontas dos dedos para escavar no meio dos livros. sabia, de ciência segura, que entre as páginas haveria de estar uma frase, pelo menos uma, que pudesse ser plantada no seu próprio poema. escava e escava com os dedos, aos poemas agrada as mãos pequenas e quentes das meninas, não o ferro frio das picaretas. ela sabia tudo, tudo isso. e escava, retirando dali uma série de frases que eram deixadas, alinhadas, em cima da mesa, mesmo ao lado do caderno aberto em páginas brancas sem qualquer linha.

tradição

não precisas de segurar nenhum papel para veres recriada a tradição - já está dentro da tua cabeça, mal misturada entre todas as tuas leituras. dos tantos poetas que leste, alguns nomes vão ficando a boiar no cimo do caldo, mas para escrever um poema deitas a concha da sopa ao fundo e tentas apanhar até o que ficou lá em baixo. não precisas de segurar nenhum papel, nenhuma caneta, para veres recriada a tradição - basta que abras a boca e deixes que todas as palavras já utilizadas possam encontrar, nos teus lábios, uma nova forma de serem ditas. e já está.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

devagar

tudo, é tudo muito lento quando se pára. de resto, nada mais. nada mais a registar nesta estrada limpa de sinalização obrigatória. quando se lembrarem de me seguir, saibam que eu vou devagar.

lista

a arte de manejar dois objectos no mesmo tempo. de fazer acontecer no mesmo texto duas sensações atravessadas na garganta. de controlar todas as coisas que sejam possíveis ter em nossas mãos. a arte do abuso, do excesso. a palavra que inventa palavra e língua inteira. a arte de manejar objectos em situações perigosas. de sair a ganhar das dificuldades. de bater a realidade com sentimentos poéticos. a arte de manejar dois objectos no mesmo tempo.

bicicletas

vi esta tarde passar um homem numa bicicleta com uma bicicleta pela mão. a prova não era de equilíbrio, era de exagero. o exagero que é maior do que a necessidade. um homem numa bicicleta com uma bicicleta pela mão. a tentativa de transportar e ser transportado, ao mesmo tempo. a tentativa de ser tudo, dono e senhor das coisas. ou apenas o querer muito agradar a alguém. um homem e duas bicicletas, talvez um presente, uma surpresa. vi-o passar esta tarde. ia feliz.

domingo, 4 de abril de 2010

"pela última vez sobre a superfície lunar da terra"*

antónio guerreiro lê um toldo vermelho e premeia-o com cinco estrelas expressas - o que seria de nós, os que se interessam por poesia, se não comprar o expresso fosse uma opção. cinco estrelas e uma frase final que merece ser repetida: "a poesia anterior de joaquim manuel magalhães continua disponível e serve-nos de vingança. é a guerra".
peguemos por aqui: guerreiro, talvez imbuído pela analogia ao seu nome, mantém acesa a declaração de guerra que magalhães sempre preconizou para a poesia, uma guerra em que se quer pensar que existe uma poesia certa e uma errada ou,de uma forma ainda mais radical, que a poesia é isto e nunca aquilo. mantém-se acesa essa declaração de guerra como no resumo dos quatro onde, por quatro euros, somos levados a pensar que a poesia portuguesa são 35 nomes, seleccionados de 30 publicações, as quatro mais representadas sendo números de apenas duas revistas. a declaração de guerra de se pensar que toda a poesia é apenas uma casa, uma visão do mundo, por mais sufocante que ela ameace ficar, tão impermeável a leituras externas parece. mantém-se acesa essa declaração de guerra, de pensar que a poesia é um feudo, um território por conquistar, pior, a poesia portuguesa é um recinto, onde direito à exposição, à elaboração de gerações, de princípios e de causas comuns cabe apenas aos iluminados. a guerra de quem está dentro, dentro está, sem convites, sem aparições.
caro guerreiro, a guerra não é essa. a guerra não é contra os poetas, contra os leitores, contra os livros. a guerra é a convivência com a palavra. a guerra é a leitura aberta, sincera e desejosa desse choque que promove a reflexão, a reprodução inventiva. a guerra é a tradição e a impossibilidade segura da sua compreensão total. a guerra é lermos e lermos e sentirmos, ainda assim, que a nossa sensação perante o acontecimento poético vai diferindo, passo a passo. a guerra não é matar o passado - é saber vivê-lo e continuar a produzir sem a ele estarmos presos.
recuso toda a guerra que não seja uma guerra pela vitória da poesia. recuso toda a guerra que não seja pela abertura do campo de visão, do sonho, da literatura. recuso as vossas repetidas declarações de guerra, também. reivindico a soberania da palavra. reivindico a soberania do diálogo. reivindico a soberania da beleza. reivindico a possibilidade da paz para enfrentar o verdadeiro combate. tudo o resto é desgaste inconsequente. nada mais.


* retirado do poema "praia do amanhã", de manuel de freitas, no livro terra sem coroa.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

postal com destinatário

para uns, todas as leis. para outros, todas as excepções. não queiram, nunca, que vos levem demasiado a sério. somos todos vítimas das nossas próprias fragilidades.

sentença

continuas a perguntar-te se leste o poema bem, nenhuma sentença é definitiva, continuas a perguntar-te se percebeste, tentas compreender os fundamentos do poema, a sua forma, a tua própria leitura, continuas a perguntar-te, nenhuma sentença é definitiva.

citação

ouvir o m80 dá nisto, perceber ao fim destes anos todos que a música "meu querido mês de agosto" é uma citação da música "una paloma blanca", foi uma distracção involuntária mas imperdoável, e na poesia é mesma assim, lemos e relemos e às tantas, percebemos que o que parecia estar ali, não está, está algures noutro lugar.