segunda-feira, 31 de maio de 2010
opção 3
falemos só do que não importa. mesmo que dizendo que seja isso o que mais importa. falemos só do que não fere nem magoa, do que não muda nem adianta. falemos assim como falam aqueles que ficam calados. e falemos como um sorriso nos lábios, sim, o mais bonito sorriso que nos for possível oferecer.
domingo, 30 de maio de 2010
domingo
no fim de tudo, é domingo. as pessoas chateiam-se, facilmente, nos mesmos passeios, nas mesmas ideias. está sol, a praia que promete. eu fecho-me na sala fresca da biblioteca, fugindo de quem pouco entende do que eu posso prometer. olho-lhes as faces e vejo fragilidades, desilusões. e depois a minha própria cara entrevejo, nessas muitas outras que por mim passam. de todos eles, o pior sou eu. barba por fazer, cabelo despenteado, os olhos muito míopes num livro de poesia. vai lá encontrar-se homem mais estranho nesta terra do fim do mundo? enfim, é domingo. as pessoas chateiam-se facilmente, é melhor não dizer nada. ficar calado, deixar de existir. aceitar que é domingo. apenas isso.
vale o que vale
turva visão a de encarar os pares, lamentando-se, enfim, do seu caminho tomado. no entanto, é bem visível ao que vem. lírica foda a tem tomada, desejosa de muitas outras recusadas. sossego não encontra senão no comprimido, na literatura mastigada que consome. difícil o encontro com o ritmo não facilita a entrada neste texto, ainda assim, a tantas páginas, pacifica-se com um dos objectos da poesia. é, ainda assim, bem visível ao que vem. a reclamar a loiça mal lavada, a roupa por passar a ferro, a unha pintada, o salto alto, as cunhadas gulosas, os homens quase todos. se um gajo quisesse foder, maltratado seria seu desejo. mas ela vem sincera e bem segura, tanto cio que lhe oculta as mansas vagas com que, enfim, se personifica. no texto a vejo a ela ou à poesia, tanto me importa. antes nada visse. antes não percebesse. alguns sonham ainda molhar a piça em tão nobre leite, a existência fosse toda uma só cidade. turva visão, ignóbil missão. vale o que vale.
sábado, 29 de maio de 2010
sorriso
podes desenhar um largo sorriso nos lábios. lês e reconheces-te, não receies, desenha o sorriso nos lábios. ainda que te tome uma leve dúvida, alguma falta de fé na ideia de que alguém escreve para ti. mas sim, podes desenhar um largo sorriso nos lábios. e guardar no teu peito o comprimento destes versos.
mão
pousava a mão na orelha quando começa a tocar a sua música preferida. para quem o via ao longe, parecia que este recusava o som que lhe entrava pelos ouvidos. quem o via de perto, na verdade, percebia que era a sua forma de ouvir a música só por dentro.
surpresa
não nos habituámos a contabilizar o tempo que vai desde o último adeus até ao novo olá, mas temos a vida cheia desses episódios, gente que aparece e desaparece, ganhando novos contornos nas relações que estabelecemos. no entanto, não nos habituámos a contabilizar o tempo, encaramos tudo como regular, nesta desordem acumulada dos dias. inventamos redutos para a surpresa.
sexta-feira, 28 de maio de 2010
espaço
conseguimos inventar o nosso espaço. cruzar os olhares e perceber as soluções. onde antes havia um lugar parado, inventámos o movimento. agora a casa vai parecer-se connosco e poderemos comer fruta no sofá entre sorrisos. conseguimos inventar o nosso espaço. conseguimos tudo o que quisermos. tudo.
alteração
toda a construção é alterável. é preciso um esforço, mas o pilar desloca-se. toda a construção é passível de ser observada de um outro ponto. imagina que passas a entrar, não pela porta, mas pela janela. alteras uma cor e logo a manhã acorda muito mais clara na construção. o teu sorriso brilha.
quinta-feira, 27 de maio de 2010
licença de construção
por esse espaço eu sei que estou vivo. vivo, em evolução. por esse espaço eu percebo que o trabalho faz algum sentido. é como se existissem fundações, pilares, e pudessem agora começar os trabalhos de levantar paredes. uma construção demorada, feita para não falhar. falhando, feita para não desistir. desistindo, feita para a ela regressar, sempre, como um lutador obstinado. assim, assim mesmo.
certa
é por isso que após a leitura me deixo ficar a ser tomado pelo texto. deixo-me ali ficar, como se o texto fermentasse alguma coisa na cabeça, cruzando-o com as possibilidade de romance que pré-existem. nada mais acontece do que um leve sentimento de segurança. segurança de estar a fazer a coisa certa. por mais incerto que isso possa ser.
caminho
acredito que uma cabeça pode ser preparada. lendo romances atrás de romances, a cabeça consegue aperceber-se do caminho a fazer por entre as fases até conseguir produzir um. no que eu não acredito é em frases feitas e em receitas infalíveis. ou seja, para lá chegar, vou ter que ir pelo caminho que acontecer. e esse, meus amigos, não é possível prever.
quarta-feira, 26 de maio de 2010
beijinhos
deslocar, ainda assim, as peças que compõem a construção. afligir o estimado público, o sossegado leitor. manter-me coerente nessa pressuposta incoerência da reinvenção. destinar a todos um sorriso, votar todos a um ilustríssimo distanciamento. "amo-vos a todos muito, mas não o suficiente para vos querer ao pé de mim logo à noite". percebido isso, seremos todos felizes. cada um à sua maneira. eu a fazer o espectáculo, vocês a virarem-me as costas.
programa
fazer do velho, novo. fazer do passado, presente. ressuscitar no coração a sensação de pertença. permitir o reconhecimento humano na obra de arte contemporânea. adoptar estes princípios como programa. manter a ligação aberta com a linha discursiva que vem do tempo. ser percebido.
território
do pormenor retirar toda a beleza. perceber a grandeza das coisas pequenas. buscar sempre o mínimo movimento para a máxima explosão. o passo que falta para o encantamento. é esse o território que habito.
terça-feira, 25 de maio de 2010
escritor
um dos trabalhos do escritor é estar consciente da sua precariedade. as palavras disponíveis não são muitas. a inspiração não existe. o momento em que te sentas perante o papel, perante a tela branca do computador, condiciona toda a conjugação que possas fazer. um dos trabalhos do escritor é estar consciente do tanto que há a renegar, na revisão futura. a repetição é uma arma segura, mas pouco aceite no papel impresso. a inspiração não existe. tudo, tudo está condicionado pela disposição, pelas dores do corpo, pelo olhar de quem passa. um dos trabalhos do escritor é não desistir. não desistir perante todas as contrariedades. o mais certo é não seres nunca capaz de trazer nada, nada de novo. mas só és escritor enquanto continuares a insistir.
luz
a luz nos olhos materializa-se como acordar. poder importar beleza dos desertos, palavras doces que se trocam muito baixinho, rente à pele. a luz nos olhos embebeda-se e dança pelas pestanas. poder imaginar todos os abraços do mundo, a leve língua sobre a língua adormecida, prova.
segunda-feira, 24 de maio de 2010
ressaca
não sei bem o que se terá passado. foi tudo muito rápido. as caras dos outros transformam-se assim. eu não sei mesmo o que se terá passado. de repente, já não havia festa, já não havia copos, já não havia nada mais do que alguns homens a correr, com o meu corpo nas mãos, o barulho de sirenes, de carros em velocidade. não sei bem o que se terá passado. para dizer a verdade, nem sei bem já o que me prometeram, quando me anunciaram como escolhida. foi tudo muito rápido. foi tudo muito rápido.
borboleta
caem-me sobre a cabeça as borboletas do céu. são pequenas. são muitas. caem-me sobre a cabeça e eu rio-me como uma perdida. não sinto os pés mas vejo-os, quando levanto as pernas da cadeira. algumas pessoas chegam-se perto de mim, de olhos muito abertos. caem-me sobre a cabeça as borboletas do céu. são pequenas. são muitas.
corte
a linha da vida foi cortada, como se de uma inauguração se tratasse. chamaram as individualidades do lugar, vestiram-me o melhor vestido. a linha da vida foi depois cortada, pegaram-me na mão com muito cuidado, usaram uma daquelas tesouras enormes, para as fotografias. quando todos pegaram nos copos com lágrimas de vinho do porto, eu senti-me fraca, pedi que me trouxessem uma cadeira. e o mundo ficou ligeiramente turvo.
sexta-feira, 21 de maio de 2010
zombie
os zombies não vêm para nos comer, arrancar as entranhas, ocupar os nossos lugares. os zombies vêm, com corpos e existências como as nossas, para ficar calados a olhar-nos. vêm para ficar calados a gozar da atenção que lhes damos, dos carinhos que lhes prometemos, sem perceber como é vazio admirar um zombie. os zombies não vêm para nos comer. vêm para nos ocupar a mente, na tentativa de perceber porque é que aquele corpo, que era brilho por dentro, agora se tornou tão baço. os zombies não vêm para nos matar. nós é que morremos, na ânsia de tentarmos perceber qualquer coisa que não tem outra explicação.
para o filipe melo
acuso
de uma coisa eu te acuso, da desilusão de ver-te crescer. tu eras o nosso homem, salvaste-nos de uma coisa passada que nada nos dizia do nosso tempo. tu eras jovem e estavas vivo e estavas ali. de uma coisa eu te acuso, da desilusão de ver-te crescer. porque desapareceu a técnica, desapareceu a história, desapareceu o encanto. agora és de toda a gente. agora não és de ninguém.
jogo
havia aquela jogo de criança idiota, o jogo do pode ser e pode não ser. a todas as perguntas que nos faziam, respondíamos sempre pode ser e pode não ser. até é um jogo engraçado, nos primeiros cinco minutos. os miúdos que insistem no jogo depois desse limite de tempo, passam a ser os mais chatos da turma. não porque sejam maus ou porque nós não gostemos deles. simplesmente, essa opção por duas coisas contraditórias entre si, essa dificuldade de escolher, de decidir, é irritantemente pueril, não tem nada a ver com aqueles homenzinhos com mais cinco minutos de vida que agora somos. e o que se nos grava na memória é que, de facto, eles eram uns chatos.
quinta-feira, 20 de maio de 2010
morte ao poeta
se o poeta não deixa as entranhas no poema, morte ao poeta. se o poeta inventa uma mãe por quem nutrir amor, morte ao poeta. se o poeta não sabe descalçar as botas apertadas que lhe puseram nos pés, morte ao poeta. se o poeta não gosta de andar à chuva e molhar-se, morte ao poeta. se o poeta pensa que é parvo, morte ao poeta. se o poeta anda armado em esperto, morte ao poeta. se o poeta canta no estrangeiro e não põe ovos na sua língua portuguesa, morte ao poeta. se o poeta é um comércio, morte ao poeta. morte ao poeta. morte ao poeta.
percepção
mais ninguém precisa de perceber. mas tu não consegues. não consegues fingir que está tudo bem, que estamos felizes, que estamos de acordo nos sonhos e nas vontades. mais ninguém precisa de perceber. e não percebem, os distraídos. no entanto, é mais do que observável o nosso distanciamento, o nosso não falar, a nossa separação. agora, mais ninguém precisa de perceber o que não tem ainda explicação.
cansaço
se toda a tua boca é cansaço, não sei mais o que te dizer. deixaste o casaco pendurado nas costas da cadeira e saíste. era ainda de dia, quando a porta se fechou. agora percebo, toda a tua boca é cansaço, as palavras perderam o sentido. foi assim que se acabou, de vez, o poeta em mim.
quarta-feira, 19 de maio de 2010
paz
não me lembro bem do que se terá passado a seguir. sei que acordei calmo, em paz. nenhum dos médicos descobrira o que levara aquele cérebro a encontrar tão intrincadas conjugações de palavras, ideias, soluções. nenhuma diferença em relação a um cérebro normal o podia explicar. no entanto, alguns médicos julgaram que, devido ao meu acto um tanto tresloucado, eu deveria saber alguma coisa. eu acordei calmo, em paz. chegara finalmente a hora de se dedicarem ao meu corpo. nunca ninguém olhou assim para mim, disse ao médico que se aproximava com um ar interrogador. e perante o meu sorriso, o medo tomava toda a sua feição.
faca
tirei do bolso uma faca que trazia guardada já há uns anos, para uma eventualidade. uma longa faca, de lâmina afiada, tratada com respeito noite após noite. uma faca que não se usa, é um potencial de energia. a cada dia sem cortar, a faca acumula a raiva de quem a possui. por isso as facas de cozinha costumam ser tão inofensivas. tirei do bolso uma faca que trazia guardada já há uns anos, de alguma forma senti que a eventualidade chegara. espetei-a bem no meio do cérebro, já retirado do crânio. o corpo estremeceu.
mostruário
a cabeça estava aberta sobre a mesa. a cabeça aberta. os dedos dele acariciando o cérebro numa valsa encenada, cuidadosa para não destruir as evidências, furiosa por descobrir o historial. a cabeça estava aberta sobre a mesa. os passos de toda a gente eram lentos, pensados. dançava-se, ali dentro. a cabeça estava aberta. não se ouvia nem uma palavra.
terça-feira, 18 de maio de 2010
fastio
mais forte do que a vontade é o fastio. o tédio que tudo invade no corpo, na vida. mais forte do que a visão é a cegueira. o apagamento de toda a luz, a ausência de reflexos. e no momento em que te sentires animal ao ponto de correres campo fora em busca de um coração que bate, lembra que a maioria no mundo vive, exactamente, dessa falta de apetite por tudo. e quando te sentires cansado de correr, talvez essa memória te ajude a chorar. a chorar no silêncio. como quem sabe.
memória
evito ler as mensagens que vou deixando perdidas neste caminho. evito, por medo de não me reconhecer em algumas, em todas elas. evito assim ler as mensagens, reconstituir-lhes uma presença que já não têm. cada corpo é o momento do momento em questão. nada mais. tenho até dificuldade em ver nalgumas destas frases uma verdade universal que nunca lhes quis oferecer. elas subsistem, apenas, porque a maquinaria nos fornece algum espaço de memória. para que o meu passado seja o presente dos que por aqui se perderem. nada mais.
segunda-feira, 17 de maio de 2010
equilíbrio
desenha uma linha no chão, não interessa que o soalho da tua casa te pareça desagradado com o risco. desenha uma linha no chão. tenta colocar de um lado as coisas em que acreditas, do outro as coisas que te parecem mais frágeis. o lugar da fragilidade é um lugar cheio. aprende, com um pé de cada lado, a manter o equilíbrio.
experiência
tu sabes que não são reais, mas estão lá. então, como sabes que não são reais? como se define isso a que se chama realidade? não sabes definir. apenas sabes. é um saber de experiência feito. experiência de loucura. sim.
caos
consegues, de facto, controlar os teus pensamentos? não, claro que não. ainda assim, tentas o impossível. lutas a noite inteira contra os sonhos que não queres ter, que te impedem de dormir. consegues, de facto, controlar o que seja da tua vida? sensações e desejos a todo o momento pelo teu corpo, no teu olhar, na tua mente. sobrevives aos caos a que dás origem. nada mais.
sábado, 15 de maio de 2010
da responsabilidade dos poetas
sou daqueles que consideram que um poeta é responsável pelos seus actos. daqueles que se entregam com seriadade aquilo que fazem, não deixando de ter um sentido crítico e uma saudável noção da precariedade do seu trabalho. no entanto, usar do humor sobre um poema ou acontecimento poético não significa desvalorizá-lo ou vendê-lo abaixo do preço de mercado. um poema é um poema. está constituído por palavras e pedaços de órgãos daquele que o escreve. devemos por isso respeitá-lo e olhá-lo como tal. uma flor que desabrocha no início da primavera, um cadáver que repousa sobre a mesa da autópsia.
sou daqueles que consideram que um poeta é responsável pelos seus actos. todos os seus poemas têm um significado e uma intenção. não acredito que um poema consiga dizer tudo aquilo que quer dizer. precisa de ser falado, lido, comentado. precisa de ser entendido, mastigado, digerido. o poeta que escreve e cala, afastando-se da luz da ribalta (mesmo que marque presença no limiar do palco), é um poeta que escusa a comprometer-se com aquilo que faz. aparece, distribui sorrisos, recebe medalhas por interpostas pessoas, fica calado. o não comprometimento com a sua arte pode ser uma ajuda no difícil caminho da procura de reconhecimento dos críticos, mas é uma falha no reconhecimento dos pares.
sou daqueles que consideram que um poeta é responsável pelos seus actos. o poeta não é um grupo. um poeta é um poeta, um ente individual que luta, no seu laboratório, contra a indefinição da palavra. a cada verso tenta encontrar um novo significado, uma nova utilização para aquele conjunto de letras. o poeta não é um grupo. um poeta dialoga, procura, nem sempre encontra. um poeta entrega-se de corpo e alma ao seu texto, sai arranhado, confuso, algumas vezes, mas sobrevive em si a vontade de se atirar ao lume da luta logo de seguida. o poeta não é um grupo. não é uma capa. não é uma crítica no jornal.
sou daqueles que consideram que um poeta é responsável pelos seus actos. não se é poeta às quinze e escriturário às dezasseis. qualquer proximidade de letra escrita, palavra falada, caneta, papel ou computador são um perigo para a sua concentração. um poeta não abdica nunca de olhar, poeticamente, a sua realidade. e quando pensa nas injustiças do mundo ou na roupa por lavar, pensa como poeta. quando prepara o almoço ou fala com o vizinho, fá-lo como poeta. quando publica um livro ou escreve uma requisição, escreve-a como poeta. não é uma benesse divina, é uma formatação do cérebro. pedir tempo para a poesia é como se pedisse tempo para respirar. o poeta respira poemas.
sou daqueles que consideram que um poeta é responsável pelos seus actos. a poesia não tem morada, não tem código postal. se formos sinceros com aquilo que fazemos, procuramos. se estivermos realmente entregues ao nosso trabalho, não desistimos. tentamos não entrar num livro com preconceitos. lemos o poeta laureado e lemos o poeta desconhecido com a mesma fidelidade ao fenómeno poético que ambos merecem. dizemos bem quando temos que dizer bem. dizemos mal quando temos que dizer mal. a nossa responsabilidade é a sinceridade. a sinceridade não preenche as salas do bom convívio. causa mossa. custa a engolir. mas é essa a responsabilidade do poeta, saber falar.
podemos não estar de acordo com as ideias dos outros, mas devemos saber entendê-las à luz daquilo que cada um faz na sua arte. devemos respeitar e compreender as ideias de cada um. devemos ser responsáveis e abertos ao que cada um oferece. devemos congratularmo-nos pela diversidade. devemos viver sem portas fechadas. devemos ter algum orgulho daquilo que fazemos. devemos ter a noção do seu lugar no mundo. devemos ter a noção da nossa função. devemos ser nós. devemos, acima de tudo, ser nós próprios. por muito que isso custe. por muito que isso fique mal. por muito que isso não nos garanta o olímpo. por muito que as coisas sejam aquilo que são.
sou daqueles que consideram que um poeta é responsável pelos seus actos. todos os seus poemas têm um significado e uma intenção. não acredito que um poema consiga dizer tudo aquilo que quer dizer. precisa de ser falado, lido, comentado. precisa de ser entendido, mastigado, digerido. o poeta que escreve e cala, afastando-se da luz da ribalta (mesmo que marque presença no limiar do palco), é um poeta que escusa a comprometer-se com aquilo que faz. aparece, distribui sorrisos, recebe medalhas por interpostas pessoas, fica calado. o não comprometimento com a sua arte pode ser uma ajuda no difícil caminho da procura de reconhecimento dos críticos, mas é uma falha no reconhecimento dos pares.
sou daqueles que consideram que um poeta é responsável pelos seus actos. o poeta não é um grupo. um poeta é um poeta, um ente individual que luta, no seu laboratório, contra a indefinição da palavra. a cada verso tenta encontrar um novo significado, uma nova utilização para aquele conjunto de letras. o poeta não é um grupo. um poeta dialoga, procura, nem sempre encontra. um poeta entrega-se de corpo e alma ao seu texto, sai arranhado, confuso, algumas vezes, mas sobrevive em si a vontade de se atirar ao lume da luta logo de seguida. o poeta não é um grupo. não é uma capa. não é uma crítica no jornal.
sou daqueles que consideram que um poeta é responsável pelos seus actos. não se é poeta às quinze e escriturário às dezasseis. qualquer proximidade de letra escrita, palavra falada, caneta, papel ou computador são um perigo para a sua concentração. um poeta não abdica nunca de olhar, poeticamente, a sua realidade. e quando pensa nas injustiças do mundo ou na roupa por lavar, pensa como poeta. quando prepara o almoço ou fala com o vizinho, fá-lo como poeta. quando publica um livro ou escreve uma requisição, escreve-a como poeta. não é uma benesse divina, é uma formatação do cérebro. pedir tempo para a poesia é como se pedisse tempo para respirar. o poeta respira poemas.
sou daqueles que consideram que um poeta é responsável pelos seus actos. a poesia não tem morada, não tem código postal. se formos sinceros com aquilo que fazemos, procuramos. se estivermos realmente entregues ao nosso trabalho, não desistimos. tentamos não entrar num livro com preconceitos. lemos o poeta laureado e lemos o poeta desconhecido com a mesma fidelidade ao fenómeno poético que ambos merecem. dizemos bem quando temos que dizer bem. dizemos mal quando temos que dizer mal. a nossa responsabilidade é a sinceridade. a sinceridade não preenche as salas do bom convívio. causa mossa. custa a engolir. mas é essa a responsabilidade do poeta, saber falar.
podemos não estar de acordo com as ideias dos outros, mas devemos saber entendê-las à luz daquilo que cada um faz na sua arte. devemos respeitar e compreender as ideias de cada um. devemos ser responsáveis e abertos ao que cada um oferece. devemos congratularmo-nos pela diversidade. devemos viver sem portas fechadas. devemos ter algum orgulho daquilo que fazemos. devemos ter a noção do seu lugar no mundo. devemos ter a noção da nossa função. devemos ser nós. devemos, acima de tudo, ser nós próprios. por muito que isso custe. por muito que isso fique mal. por muito que isso não nos garanta o olímpo. por muito que as coisas sejam aquilo que são.
sexta-feira, 14 de maio de 2010
das pessoas. dos objectos.
percebo mal estas coisas das pessoas, dos objectos. percebo mal tudo o que ultrapassa o tamanho do pormenor. estou habituado a ver o que é pequeno, rasto, límpido. estou habituado a tocar as coisas depois de lhes limpar a lama. na merda sempre me custou fazê-lo. percebo mal estas coisas das pessoas, dos objectos. uma vez quis largar uns sapatos ao lixo, por ter pisado um dejecto de cão. a verdade é que as solas se acabaram por descolar e tive que as mudar. adeus solas que pisaram a merda. adeus merda. a mim as coisas limpas, purificadas. percebo mal estas coisas das pessoas, dos objectos. busco uma beleza que atravessa todas as pequenas coisas. custa-me a ver a delimitação. vejo o campo aberto. vejo o campo aberto. percebo mal estas coisas das pessoas. dos objectos.
mundo
ainda assim, no prédio, um ruído. acredito que de uma das casas vazias. o vento ou o tempo terão aberto uma portada, que agora se balança ao gosto da rotação da terra. um ruído ligeiro que vai crescendo em tensão repetida. no meio do silêncio, o ruído. um mundo que se incomoda.
calado
lá fora chove, está calada a casa. se alguém caminha, fá-lo devagar, escondido da chuva e dos barulhos que denunciam. se alguém ainda está para chegar, não se anuncia. lá fora chove, está calada a casa. só o barulho dos nossos corpos que respiram no sono. só o barulho dos nossos sonhos, dentro das nossas cabeças. está calado, o mundo.
quinta-feira, 13 de maio de 2010
aproximação
deixa que a boca se abra devagar. descobre a língua leve sobre o lábio. deixa que a boca se abra, inspira o cheiro que te ofereço. treme, treme um pouco. e voa.
quarta-feira, 12 de maio de 2010
contra-break
tens, no entanto, a malícia suficiente para usar a força do adversário a teu favor. quanto mais força ele depositava na bola, maior o efeito com que lhe respondias. de tanto investirmos energia num jogo, acabamos por perder a noção do espaço. respondeu-te mal, abriu o flanco, aceitaste o presente. recuperaste o ponto, agora sim, ciente das possibilidades discursivas de um serviço.
terça-feira, 11 de maio de 2010
território
quando aceitas uma boa ideia, não julgues que ganhas crédito com isso. a igualdade é bonita, quando existe. na subida da escala social, lembra-te sempre que quem lá está há mais tempo, está lá há mais tempo. vê as coisas de uma maneira que, quem acabou de chegar, ainda não teve tempo para entender. quando aceitas uma boa ideia, não julgues que ganhas crédito com isso. a igualdade é um caminho muito longo, não é um dado adquirido. e quando desceres do pedestal, é bom que estejas preparado para responder pelas tuas acções. é bom que saibas justificar aquilo que escolheste ou não, enquanto lá estiveste em cima. podes não voltar a subir de divisão, podes ter que entrar noutro campeonato. o melhor será, sempre, jogares de acordo com as tuas próprias regras. essa, sim, será a maneira de estares sempre seguro do terreno em que pisas. minado ou não.
homem-peixe
existem muitas formas de apanhar um peixe. talvez existam menos de apanhar um homem. das várias formas de apanhar um peixe, muitas delas são socialmente aceitáveis. das maneiras existentes de apanhar um homem, muitas delas serão moralmente condenáveis. uma coisa é certa. nunca devemos confundir um homem com um peixe. ou acabamos, nós mesmos, enredados nessa rede que a sociedade aceita, mas a moral condena.
ainda não
ainda a pressão não começou, tu já a percebeste. há qualquer coisa (que não consegues explicar aqui, agora, mas que existe) de diferente na forma das pessoas te anunciarem os gostos, de uma maneira quando é genuíno e descomprometido, de outra quando vem a ser uma forma de te convencer alguma coisa. ainda a pressão não começou, tu já percebeste que aquilo não é o normal. fica-te um comichão na existência.
segunda-feira, 10 de maio de 2010
ordenar
alguns acidentes acontecem dentro dos livros. como estar deitado no sofá a ler e a cabeça fugir do texto. a cabeça a fugir, o texto ali, debaixo dos olhos, a respiração a alterar-se. de repente, percebes que passaste duas páginas sem ler. mas durante esses minutos, qualquer coisa se gerou na tua cabeça. uma ideia, um poema. qualquer coisa que é um acidente, no tempo normal da leitura de um livro. e depois perguntas-te, será que devo voltar atrás?
acidente
nunca estamos à espera do acidente. o acidente é sempre o outro. nunca estamos à espera, somos sempre vítimas. mesmo que, legalmente, a culpa nos possa vir a ser imputada. nunca estamos à espera do acidente. e não sabemos como reagir quando ele acontece. o acidente. esse intervalo na ordem natural das coisas.
sexta-feira, 7 de maio de 2010
corpo
o corpo morto é ainda o corpo. é o amor quem lhe dá a vida. o corpo morto ainda atrai a mão, o abraço, o beijo. atrai tudo o que atrairia se não fosse morto. mas o amor dá-lhe a vida. transforma-o, inventa-o. e há um sopro de vida, gestos que se insistem no seu ser morto. o corpo morto é ainda o corpo.
eixo
a cabeça ligeiramente fora do seu eixo. ainda funciona, sim. mas fora do formato em que se sente confortável, inteira. a cabeça ligeiramente fora do seu eixo. as ideias tortas, a sair apenas a meio. as ideias incompletas, inseguras. a cabeça ligeiramente fora do seu eixo. o corpo morto.
quinta-feira, 6 de maio de 2010
eu
e a flor cresceu entre os dedos. a flor cresceu e pintou-se o quadro. ficou na memória esse caminho aberto. o livro, o livro encontrado. a imagem percebida. ficou na memória, na memória futura deste projecto de ser. de ser eu. um bocadinho melhor que ontem. um bocadinho melhor.
quarta-feira, 5 de maio de 2010
nas caldas da rainha
o luiz pacheco dizia que criancinhas servem de alimento aos pacientes das termas das caldas. quase toda a gente diz que nas caldas toda a gente passa o dia agarrado a pilas de cerâmica. uma vez fui às caldas insultar uns miúdos. era das caldas uma rapariga lindíssima que se dizia prima de uns vizinhos meus, coisa que eu nunca pude vir a confirmar por só a ter visto uma vez. nas caldas filmaram um grande filme, chamado o ninja das caldas. nas caldas há uma estátua de uma rainha. nas caldas há um mercado. nas caldas existem cafés antigos. nas caldas nasceu uma miúda que eu conheço. nas caldas viveu alguém que eu conheci. já fui feliz nas caldas, já passei secas nas caldas, já fiquei triste nas caldas. já me vim nas caldas. já fui às caldas ver um filme. já passei muitas vezes pelas caldas. o luiz pacheco dizia que criancinhas servem de alimento aos pacientes das termas das caldas. lembro-me de quando li isso e daquilo que pensei. li isso aqui nesta mesma sala onde estou. e quando li, senti que ele tinha razão. sim, só podia ser isso. criancinhas a serem entregues nas termas e a desaparecer misteriosamente. já fui ver a bola nas caldas, já fui ao teatro nas caldas, já fui a um concerto nas caldas. já fui a uma clínica nas caldas, ver o meu avô que lá foi operado. conheço muita gente das caldas. muita gente que viveu nas caldas. agora penso o que é que me terá levado a achar que o luiz pacheco tinha razão. criancinhas comidas nas caldas? mas isso é uma coisa impensável e violenta, uma frase sem jeito nenhum. às vezes a nossa cabeça acredita nas coisas mais improváveis. acho que isso também já me aconteceu nas caldas. agora não me lembro bem.
linha do oeste
na linha do oeste, andei uma vez a pé, à espera que o comboio não chegasse. à beira da linha me sentei, a olhar um campo de terra, onde rapazes corriam atrás de bolas. na linha do oeste namorei uma rapariga até à figueira da foz. a olhar a linha considerei os campos de óbidos os mais belos. foi na linha do oeste que me fizeram parar na estação das caldas da rainha, onde eu saí para tomar café e comer um bolo. foi a olhar a linha que eu chorei algumas lágrimas, poucas, num dia de despedida. se estivesse distraído, era capaz que a linha do oeste nunca me tinha dado. mas deu-me muitas coisas, entre elas, esta história.
estação
na estação com a cabeça cheia de poemas. sempre achei as estações lugares altamente inspiradores. quando era mais novo, sentava-me no apeadeiro à espera que dos comboios descessem raparigas bonitas, nunca antes vistas aqui pela vila. elas nunca apareciam. mas na estação a impossibilidade perdia todo o sentido, a surpresa era um facto consumado e certo, mais dia menos dia. na estação com a cabeça cheia de poemas, capaz de rebentar com as costuras do chapéu antigo que agora reparo ter na cabeça. um dia como os outros. tudo é possível.
terça-feira, 4 de maio de 2010
cadafalso
então tu subiste ao monte e tudo o que encontraste foi o cadafalso. nada te convenceu a admirar a paisagem, a ouvir os pássaros, a inspirar o ar limpo. tu subiste ao monte e toda a tua atenção dirigida ao cadafalso. sabendo que irias morrer, só a morte te interessou. não percebeste o quão rarefeito é o tempo que nos dão para apreciar a beleza. não percebeste.
maneira de desenhar um círculo
podia dizer-te, coloca-te no centro, faz uma roda perfeita, mas não. isso não resolverá o problema. coloca-te ao alto, tenta alinhavar com os dedos aquilo que a tua cabeça tão bem imagina. saiu-te torto? sai sempre torto.
manhã
manhã sincera, o frio ajuda a fixar os planos do olhar à porta de casa. manhã de novo, o cabelo despenteado, a estrada vazia. manhã manhã, sempre à procura de maneiras de dizer, sempre à espera que se resolva o problema de exprimir, exactamente, todas as linhas curvas de uma recta.
segunda-feira, 3 de maio de 2010
esperança
era de prever. era de prever o sangue, a incompreensão. eram, também, de prever todas as palavras fora dos lugares. algumas marcas na pele. as pálpebras inchadas. tudo, tudo era de prever. menos a capacidade de adivinharmos o pior, quando ainda temos esperança.
domingo, 2 de maio de 2010
caderneta
vais contar até cinco e dizer todas as cidades espanholas de que te lembras, lá pela vigésima quarta vais começar a pensar em clubes de futebol, depois da trigésima terceira vais dizer, por engano, um nome que não é uma cidade, alguém te vai censurar e tu acordas, percebendo que sim, o espanha 82 já acabou há muito tempo, há demasiado tempo.
matías fernandez
sentado à mesa com cigarros imaginários a passarem-te entre os lábios, nenhuma banda sonora para além da longa conversa que tens contigo mesmo, estás sempre a recomeçar o mundo na tua cabeça, estás sempre a inventar o mundo contigo mesmo, sem perceber as metáforas, sem seres capaz de adiantar a necessidade de tudo isso, mais sete dias, mais sete dias, olhas em frente e não vês descanso, sentado à mesa com cigarros imaginários apagados num cinzeiro que não existe de certeza.
cerromaior
fecha o casaco, desce pela rua, na esquina uns homens fumam, conversam numa língua que não compreendes, fecha o casaco, inventando a vida na cabeça, os teus nervos explodem e ninguém nota, algumas pessoas ouviram barulhos atrás das portas. canta baixinho, só para ti, uma música que te lembras de passar na rádio, há muitos anos, canta baixinho, inventa as palavras, o teu corpo a desfazer-se e ninguém sente, algumas pessoas a chegarem a casa de madrugada.
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