sábado, 27 de fevereiro de 2010

mensagem presidencial

depois desta breve interrupção, a programação de todos os dias voltará já a seguir. pedimos desculpa pelos transtornos causados.

arte poética com elementos

dia de chuva, cabeça de chuva.


para o pedro mexia

elogio da tentativa

repetindo o mote: sem o conseguir. ainda tentando, sem o conseguir. sempre tentando, sem o conseguir. uma e outra vez. sempre. sem o conseguir. e nos lábios e nos dedos um imenso prazer no tentar.

elogio da brevidade

a cada página, o seu segredo. sabendo sempre que cada segredo pode ser apenas uma palavra que insistimos em descobrir. sem o conseguir.

brevidade

como disse gonzalo cenorio, nas mesas redondas, como na prisão ou no hospital, conhecem-se os verdadeiros amigos. e um encontro de escritores não é mais do que estas diferentes coisas. um hospital onde se curam velhas feridas, uma prisão de onde não conseguimos sair nunca (seja a prisão da escrita ou a prisão da humanidade) e uma sucessão de mesas redondas onde vamos entrando nos diferentes mundos de cada um. dias sucessivos a encontrar mundos, pessoas, aventuras, histórias. dias sucessivos a viver no limite das nossas possibilidades, com os olhos cansados, com o corpo deslocado do seu habitual motor. gonzalo cenorio prometeu também aquilo que henrique viii disse a cada uma das suas oito mulheres: "terei que ser breve". assim comigo, a brevidade. todos os dias em busca da perfeição na brevidade. ainda sem o conseguir.

transformação

quase todos os poetas começaram a escrever para atrair uma rapariga para ser sua namorada. se bem me lembro, no princípio, o meu verbo não era a atracção. o poema era sem utilidade. como prolongamento de um sonho, no poema fazia a rapariga, o namoro, o meu problema existencial que não conseguia explicar numa sensação que qualquer um que me rodeasse pudesse compreender. transformar o depressivo na razão da depressão. tirar da carne para fazer nova a mesma carne que consumia.

carnificina

já jorge melícias fala da poesia como uma carnificina sem sangue. tem a sala limpa, melícias. tem a sala limpa e a casa arrumada, cada objecto de corte arrumado no seu lugar, cada página brutal e encenada com a voz que se afina, humanizada máquina. sem sangue, sem sangue onde as palavras pulsam a cada momento, onde as palavras crescem como corpos laboratoriais, experiências que forçam, a cada verso, o limite de si mesmas. uma carnificina sem sangue. um corpo destroçado, porém, belo.

carne

sugere inma luna que o poeta só sabe que é poeta quando come o primeiro pedaço de carne viva. alguns deles caminham, desde sempre, pelas ruas, ainda com restos de sangue e vísceras junto aos lábios. não só provam a carne viva, como mergulham nela, tentando encontrar razões que estejam no limite das coisas. a violência pode ser a chave deste mundo, querem alguns acreditar. tal como a paz. nenhuma delas sossega, ainda assim. nenhuma delas.

paiol

o terceiro reich vê a luz numa festa de karaoke poveira. algo está deslocado nos termos. adolescentes perplexos perdoam o apresentador reconhecido da televisão, mas não perdoam a invasão de território musical, a encenação lux em bar da província. como um lança-chamas no paiol, a sensação que me toma naquele meio. certo tipo de reconhecimento está demasiado perto daquilo que fugimos.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

uma anedota

conta j.j. armas marcelo:
camilo josé cela, nomeado para o senado pelo rei juan carlos, adormece durante uma sessão. o presidente do senado, interrompe a sessão para perguntar:
-don camilo, está dormindo?
-não, estou adormecido - responde don camilo.
o presidente, catedrático de latim, riposta:
- é a mesma coisa!
e determina don camilo:
-caro presidente, não é a mesma coisa estar fodendo e estar fodido.

loucos

entre o público estão, como sempre, alguns loucos. algumas pessoas que aproveitam o microfone para poderem falar aquilo que sempre lhes calam em todos os outros lugares ou tempos. falam em partilha, mas parecem não perceber que só ali estão a chatear os outros. seria preciso isolá-los e encarar cada uma das suas participações como um momento humorístico sobre o portugal real. assim ao jeito "liga dos últimos". só para os poder aguentar.

poema

bernardo carvalho sente que a escrita não é natural. é um facto. o natural é não escrever, não ter nada a dizer que seja passível de encontrar um papel, uma tela de computador. o poema seria assim algo que combate a hegemonia de gosto. algo que não é comum a toda a gente. algo que nasce para acrescentar, lutando, ao que existe. e só essa ideia é já um poema inteiro.

livros

isaac rosa afirma que pensar em leitores ou pensar em compradores de livros não é bem a mesma coisa. e uma biblioteca inteira sorri, municipalmente, a entrega dos livros a preços de oferta aos ratinhos que a percorrem. nas lojas, os livros esperam e desesperam, em lágrimas, por um comprador. e os leitores lêem, lêem, lêem.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

uma confissão

as pessoas que encontramos poucas vezes mostram mais os sentimentos. têm mais à beira dos lábios aquilo que lhes acontece no coração. as pessoas que encontramos poucas vezes sabem melhor o que nos dizer, de uma forma que nos toca ao ponto de ficar. para sempre, talvez.

uma chegada

chegar e todos os amigos. os abraços. os reconhecimentos. os sorrisos. chegar e assim. como todos os anos.

uma viagem

não sei quantos quilómetros (muitos), chuva e sol e trânsito, paragens e partidas e paragens e partidas, uma viagem, eu e tu, hoje.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

voo

um destes dias ainda vamos voar sobre a cidade, encontrar segredos guardados pelo vento nos telhados, sentir os ares da serra a encher-nos os pulmões, um destes dias ainda vamos ser mais que pássaros, nuvens, cheias de água e de carinho, prontos a chover sobre toda a gente, um destes dias ainda vamos rir-nos de tudo isto, com gargalhadas enormes e compostas pela felicidade que sentimos quando estamos juntos.

quebra-corações portátil

palavra atrás de palavras, o quebra-corações portátil pousado na mesa, o olhar de olhos fechados, a mão sem mão, o corpo no corpo no corpo, palavra atrás de palavras, palavras feitas umas nas outras, tudo se conjuga, tudo se encontra, o quebra-corações portátil ligado à energia, bateria carregada, o olhar que olha mas não olha, a mão que toca mas não toca, o corpo no corpo no corpo, naquele momento, naquele momento preciso.

música

quando ficas viciado numa música e a ouves repetidamente o dia inteiro, as suas palavras confundem-se com os teus pensamentos e, a certa altura, já não consegues desvendar o que é poema, o que és tu, o que é voz, o que é ritmo, o que é sentimento, o que é isto, o que é isto, o que é isto.

publicidade institucional

em dia de aniversário, uma crónica muito especial, com serra da vila, torreense e maus jogadores de futebol, no portal rascunho.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

três recados III

eu, que já vi muitos tipos bem dispostos, nunca vi um tipo mais bem disposto do que tu. e olha que até seria aceitável eu estar a dizer isto a alguém, não fosse o caso de tu fazeres hoje um ano. apenas um ano, já um ano. eu, que já vi muitos tipos bem dispostos, nunca vi um tipo mais bem disposto do que tu. e olha que essa boa disposição te apareceu mal nasceste. puseste o pé cá fora e lá estava, um bem disposto. eu, que já vi muitos tipos bem dispostos, nunca vi um tipo mais bem disposto do que tu. no caloroso sorriso que emprestas a todos os que passam por ti, estás a contagiar toda a gente com essa boa disposição que em ti parece, mais que natural, essencial. e o meu terceiro recado é um agradecimento. pelo sorriso. um abraço e parabéns.

para o joão maria

três recados II

há muita coisa que acontece neste mundo. muita coisa que podia ser prevista, muita outra que, pelo contrário, nós nunca estamos realmente preparados para enfrentar. há muita coisa que acontece neste mundo. muita coisa boa, muita outra que nos deixa um sabor amargo na língua. há muita coisa que acontecer neste mundo. muita coisa que não te dirá nada, muita outra que te será inacreditável perceber que há gente que não a vê. há muita coisa que acontece neste mundo. uma delas és tu. tu. vais estar sempre a acontecer. não te esqueças disso.

para o joão maria

três recados I

eu, que já vi muitos tipos com vontade de ser pai, nunca vi um tipo com tanta vontade de ser pai como o teu. ainda tu não existias e já ele sabia exactamente todos os pormenores do que seria receber-te. é claro, depois teve que aprender tudo do princípio, mal tu nasceste, mas lá que ele se tinha preparado, sim, tinha-se preparado. eu, que já vi muitos tipos com vontade de ser pai, nunca vi um tipo com tanta vontade como o teu pai. e o meu primeiro recado é para que te lembres sempre a sorte que tens.

para o joão maria

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

sem escolha

lá fora chove, chove cada vez mais. aqui em baixo só o silêncio. dizem que a vizinha morreu. que o cão se calou. dizem. a mesma voz a ser diferentes pessoas, a ser cada um de nós, no seu momento de solidão. lá fora chove, chove cada vez mais. aqui, na sala, vazio. um vazio enorme. resta uma poltrona. onde quem se sentar sentir-se-á desconfortável. nenhum de nós tem como escolher.

voz

a voz é sempre a mesma, apesar dos três corpos. a voz é sempre a da mesma mulher magoada e triste. a mulher sem esperança, porque todos os seus desejos são irreais. a mulher feia, envelhecida, pelas suas próprias palavras. a voz é sempre a mesma. o corpo sobrevoa a sala. já não se ouve nada.

vazio

começando, tudo é um pouco vazio. o edifício antigo na zona velha da cidade. as escadas brancas, despidas. os sons estranhos, metálicos. tudo é um pouco vazio. a porta aberta e metade da sala sem cadeiras. o palco despido. tudo é um pouco vazio. nesta vida.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

inocente

nada inocente, nada inocente mesmo. mesmo que seja um olhar, um sorriso, pleno de fragilidade. mesmo que seja calado, guardado para dentro da boca. nada, nada inocente. eu vi.

mas nós buscamos sempre algo mais verdadeiro, genuíno. algo que possamos raspar com os dedos, como as paredes velhas das casas de férias. algo que possa ficar marcado na alma, no corpo. buscamos algo maior, mais quente. qualquer coisa que não fique pela inteligência, pelo pensamento. queremos algo que soe forte dentro do coração, que expluda com os músculos. qualquer coisa que nos rebente todos, é isso. é isso que nós queremos. só isso.

mão

o poeta está ali, à mão. podes estender o braço e tocar-lhe. podes ver o que bebe, o que come. pedir igual. o poeta está ali, sem caneta ou papel. é uma pessoa como outra qualquer. podes ver como respira, como teme com o olhar. o poeta está ali, despido. podes desejar-lhe as boas noites antes de voltar a casa.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

noventa minutos

mesmo quando parece que este blogue é sobre futebol, este blogue não é sobre futebol. outras vezes, são as próprias palavras que se fazem bola chutada para canto. outras ainda, a vida em si que parece ter percebido mal as ordens prévias do treinador. na vida, temos a dificuldade de saber quais são os dias de treino e os dias de jogo. nem sempre compreendemos quando marcamos um golo, quando é lícito celebrar. aceitamos mal que nos tentem fazer entrevistas rápidas, não escutamos o apito do árbitro. a vida é uma confusão. e talvez seja isso que torna tão saboroso noventa minutos disputados dentro de quatro linhas. com o quarto árbitro a indicar, oficialmente, a duração dos descontos.

inteligente

na entrevista a seguir ao jogo, o repórter da antena um comenta a inteligência de ruben micael no lance do segundo golo. ruben micael sorri, atrapalhado. é um facto: no futebol, por vezes, é desconfortável ser inteligente. como na vida, aliás.

distraído

pressionado pelo jogador do futebol clube do porto, sol campbell toca a bola com o pé e fabianski não consegue deixar de a segurar entre as mãos. livre indirecto. campbell leva as mãos à cabeça, fabianski segura ainda a bola, incrédulo. o árbitro ordena a devolução da bola ao jogador do porto e ruben micael marca o livre no mesmo segundo, permitindo que falcao faça o golo. os jogadores do arsenal assistem, parados, à jogada. são assim as tragédias. o jogador mais experiente, o guarda-redes da melhor equipa, o árbitro com lugar no mundial, nenhum, nenhum consegue evitar, algumas vezes na vida, um momento de distracção fatal.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

mensagem apagada

olho a mensagem, penso na mensagem, não percebo a mensagem, olho a mensagem, penso na mensagem, não percebo a mensagem, olho a mensagem, penso na mensagem, não percebo a mensagem, olho a mensagem, estou cansado da mensagem, apago a mensagem.

tempestade

se inicias uma tempestade num copo de água, cuidado, os dias de chuva tendem a encher os copos, sobretudo os que ficam nos beirais, se inicias uma tempestade num copo de água, pensa bem, logo hoje que é entrudo e os copos abandonados pela rua, se inicias uma tempestade num copo de água, pelo menos, não te esqueças de vestir o impermeável e calçar os botins, vais-te molhar.

direcção

vi uma bola a saltar pela estrada numa tarde de chuva, procurei uma criança que corresse atrás dela, mas nada, era apenas uma bola, rua abaixo, talvez também ela procurasse a criança a correr numa outra rua qualquer.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

noite

a noite é longa, longa, até ser dia. as ruas cheias, as caras que se sucedem à tua frente, conhecidas ou desconhecidas, vão ficando gravadas no teu cérebro, de uma forma a que não saberás como voltar. ouves as frases pela metade, quase nem reconheces os lugares. a noite é longa, longa, até ser dia. e agora já há algum tempo que amanheceu.

sim

sim, claro que te conheço. mesmo que te mantenhas ao longe, escondida no olhar que fixas em mim. nada dizes, nem te aproximas sequer. mas fica a mensagem, nesse olhar. e eu, eu, sem saber o que dizer.

não

não, não te conheço. nem sei do que falas quando repetes nomes e histórias que se passaram contigo. não conheço os amigos de que falas, que me apresentas, como se fossem velhos companheiros de qualquer coisa que não aconteceu. não, não te conheço. não sei o que dizer.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

uma vez

a cara fica muito fria, quase gelada. o corpo treme, um pouco. na mão, sucedem-se os copos, um cigarro. a música, muito alta. as pessoas, os olhares, o brilho das máscaras encharcadas. a cara fica muito fria, quase gelada. o vento nas ruas abertas. os gritos, os sonhos, a alegria exagerada. a cara muito muito fria, quase gelada. é inverno, inverno a sério, deste lado do mundo. contra a vontade de todos, saímos, saímos à rua, por uma vez no ano, sem disfarces.

carnaval

a água não pára de cair na rua principal. da janela, vejo o desfile desfeito, as pessoas a correr para se abrigarem do temporal. no chão, uns papelotes deixam-se arrastar numa mistura de água e sujidade. está apenas a começar, este carnaval.

aguaceiro

na casa havia um gato que não podia ver copos com água. qualquer copo deixado em cima da mesa, logo era derrubado. o gato era assim. entornava a água. e de noite, tinha sonhos cheios de aguaceiros.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

serpentes

depois, basta que a tua voz seja firme para que segures quem entra na sala. uma voz firme é como uma ordem. uma ordem dócil, balançada nas frases. basta isso. basta que saibas usar esse dom. o que encanta serpentes.

estátuas

entras em mim com os pequenos olhos abertos. estás à vontade, pareces conhecer todas as pequenas salas. não procuras nenhum tesouro, apenas te sentas e dispões. estás à vontade. isso é estranho. isso é bom.

conhecer

então, tens a sensação de que toda a gente te conhece. olham-te, sorriem-te, dão-te as boas noites. tu tentas corresponder ao sorriso dos outros, felizmente tens o sorriso fácil, aparentemente sincero. então, tens a sensação de que ninguém te conhece. olham-te, sorriem-te, dão-te as boas noites. pareces perceber que sabem apenas o que é aparente em ti. felizmente não aparentas nada de mal, és mais um gajo, mais um, só isso.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

flutuar

muitas vezes resta apenas um sorriso, um sorriso enorme e tonto. muitas vezes fica-se assim no silêncio, no quarto escuro, na fila do autocarro. o olhar perdido e o sorriso. mais nada. mesmo mais nada. um sorriso a flutuar.

inocente

estamos sempre a culpar o amor das coisas más. da falta de sono. do fastio. da tristeza. do abandono. quando o amor é todo o contrário. não culpem o tipo inocente. vá lá.

amor

se tens medo de o perder, já não é amor que sentes. o amor é o lado bom. dos sorrisos, da partilha, do estar sempre sempre lá. se tens medo de o perder, é outra coisa. nós achamos sempre que as coisas boas vão acabar. mesmo quando as coisas boas duram muito tempo.

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o homem revoltado, no portal rascunho.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

problema

se cada texto é um problema, eu não sou certamente a pessoa certa para o resolver.

prisão

a tua vida vai juntando as peças até que um dia já consegues prever as tuas sensações perante quase tudo. ou seja, antes de chegares a fazer a asneira, já sabes que a vais fazer. assim um pouco ao jeito de acordar antes que o despertador toque. ainda assim, tu esperas. esperas até que faças a asneira, esperas até que o despertador toque, e só depois reages. durante toda a tua vida vais juntando as peças e acordando cada vez mais tempo antes da hora programada no despertador. sempre com uma secreta esperança de que, um dia, prefiras desligá-lo antes da hora. nesse dia perceberás que és livre. e procurarás, então, uma nova prisão para a tua vida.

estrada

encontra-me uma estrada, repetia eu dentro da cabeça, encontra-me uma estrada, inventa-me uma filosofia, dentro, eu, da cabeça, encontra-me uma estrada, inventa-me uma filosofia, ajuda-me a explicar melhor isto que acontece, eu, repetindo, uma vez mais, na minha cabeça, uma estrada, uma estrada, uma estrada.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

agora

apesar de tudo havia uma árvore grande naquela rua, uma árvore grande que agora cortaram, e tu acordas todos os dias para olhá-la, um pequeno resto de árvore à altura do chão, uma pequena cartilagem de memória que ficou por desplantar, arrancar à raiz que agora é morta. apesar de tudo havia um choro de uma criança dentro do prédio, um sinal de vida que resiste, e tu acordas todos os dias para ouvi-la, um pequeno sinal de vida tão recente, um pequeno corpo em crescimento, uma mãe que sorri agora é viva. apesar de tudo, apesar de tudo, tu ainda te fazes à estrada, acordas todos os dias com uma força renovada, qualquer coisa em ti que é sangue e escorre, qualquer coisa em ti que é sentimento e esforça-se, qualquer coisa onde antes havia morte e agora vida, agora vida, agora ainda.

dia

à segunda-feira a cabeça quer e o corpo desobedece, todos os boletins meteorológicos te ameaçam com chuvas das mais diversas proveniências, as pessoas correm atrasadas para os desempregos, o pequeno-almoço azeda-te na boca, a cabeça quer e não quer, o corpo só desobedece.

calendário

a voz arrastada pela manhã, os dedos perdidos nos cabelos, os olhos sobre a janela do escritório, a boca fechada, os pés pesados, segunda-feira, segunda-feira...

sábado, 6 de fevereiro de 2010

certo

e depois, todos sentados nos seus pequenos tronos, a dizer que o que interessa é outra coisa. não aquilo de que se fala. outra coisa. certo...

banalidade

o que é demasiado não chega. uma notícia, comprovada, seria o suficiente para deitar abaixo um governo. centenas de notícias aparentemente vagas, aparentemente de fontes inexplicáveis (ou consegues explicar um segredo de justiça quebrado, uma conversa de café sussurrada por e-mail), não chegam. é a conquista da banalidade.

conspiração

tenho a tendência natural para não acreditar em teorias da conspiração. quando essa teoria é maquinalmente repetida por toda a gente, em todo o lado, mais incrédulo me sinto. as pessoas repetem algo totalmente inacreditável como se fosse uma verdade absoluta. onde terá ficado a ligação à realidade?

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

o mundo

somos sempre novos demais para saber o real impacto das simples palavras que conhecemos. somos sempre novos demais para encontrar nos pormenores as grandes soluções da vida. somos sempre novos demais para descobrir, entre os destroços da tempestade, a recordação de uma vida inteira. somos sempre novos demais para sermos novos demais. o mundo só está agora a começar, mesmo.

sede

a nossa sede é um território grande como um estado inteiro, sei lá, carolina do norte, dakota, florida, a nossa sede é um encontro de diplomatas na fronteira, uma guerra por resolver, um edifício acabado de construir. a nossa sede é uma mulher linda a caminhar pela praça esta manhã, é um sorriso de uma criança junto ao pai babado, um velho familiar que sai do hospital, uma lágrima mais forte que toda a tragédia. a nossa sede é esperança e vontade, alegria e felicidade. a nossa sede é podermos sempre beber sem a matar. a nossa sede.

dia

um transístor em cima da mesa, um dia que ainda nem começou, uma borboleta que bate as asas na china, um homem que olha a terra no quénia, uma palavra que fica presa na garganta seca, um dedo a descobrir pele, uma chávena de chá em cima da mesa de um financeiro de nova iorque, um postal entregue pelo carteiro em sidney, um dia que ainda nem começou, um dia que ainda nem começou.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

sempre

eu sei sempre quando minto. ligado ou desligado tanto faz, a palavra traz o efeito desejado. eu sei sempre quando sinto. para entrar pelos meus olhos basta que pares um segundo. eu sei sempre, eu sei sempre. e a cada dia o ritmo mantém-se certo, inabalável. eu sei sempre quando minto, quanto minto, quando sinto.

contabilidade

nem vou contar quantas vezes disse chuva, aguaceiro, inverno. não vou contar contigo quando sair de casa de manhã. contar com o tempo que me fazia sorrir mal abria a janela. contar com a brisa quente na cara. contar com o mar azul. nem vou contar pelos dedos porque os dedos não haverão de chegar. não vou contar os segredos que tenho. contar com um telefonema ao fim da tarde. contar com uma palavra. contar com o jantar. nem vou contar quantas vezes já contei tudo aquilo que agora já não conto. ou talvez eu desconte, uma vez mais, num caderninho das histórias que temos, tu e eu, meu lugar no mundo. talvez eu o faça. talvez possas contar com isso.

chuva

já voltou, já voltou a chuva. eu ainda nem liguei a música, nem abri os olhos, já voltou a chuva. eu ainda nem saí do sonho, nem saí do sono, já voltou a chuva. nem mudei de casa, nem comprei a máquina, já voltou a chuva. nem lavei a roupa, nem soube da nota, já voltou a chuva. já, já voltou.

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se frequenta este blogue, talvez lhe interesse visitar a crónica semanal do autor no Portal Rascunho

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

peso

um dia dizem-te na rua que um homem morreu. apesar de tudo aquilo que aconteceu depois, foi um homem com quem trabalhaste durante alguns anos. foi um homem que te conheceu quando eras muito pequeno. foi um homem que era amigo do teu pai. apesar de tudo aquilo que aconteceu depois, esse homem morreu e agora já nada pode que desfaça as atitudes que tomou. não pode pedir desculpa, não pode analisar à distancia, não pode recomeçar o que foi interrompido. nunca se volta à inocência, mas pode-se sempre voltar à decência, aprendeste tu. um dia dizem-te na rua que um homem morreu. e no dia e na hora do seu funeral, tu chegas-te junto à igreja, caminhas atrás do caixão, entras no cemitério, ofereces-lhe uns segundos de silêncio. esse homem morreu e agora já nada pode. tu ainda podes o último gesto de reconciliação. prestar-lhe respeito. e quando sais do cemitério, trazes sobre ti o peso todo da mágoa criada nos últimos anos. agora és tu quem leva em si o peso. agora és tu quem ainda pode fazer alguma coisa para o desfazer.

mágoa

o tempo passa e percebes melhor. um dia o teu avô morreu e estás no velório, à porta da igreja, com o teu pai. nesse dia um homem chega junto de vocês os dois, dá os pêsames ao teu pai e não te dirige a palavra. não como se ignorasse que o teu pai tem um filho e esse filho estivesse ali (quantas outras pessoas que não te conheciam vieram, do mesmo modo, cumprimentar-te e dar-te os pêsames também a ti), mas ignorando-te propositadamente. o tempo passa e percebes melhor. não é maldade. é uma total ausência de formação. e a divergência não foi pessoal, nem política. para aquele homem, tu puseste em causa a sua ascensão. o tempo passa e percebes melhor. uma pessoa aprende sempre através das lições mais difíceis. ficar magoado não é copiar os erros de quem te magoou.

virar a cara

um dia um homem passa por ti na rua e vira-te a cara, não falará mais contigo. nunca tiveram uma divergência pessoal, apenas um confronto de opiniões políticas. um dia um homem passa por ti na rua, tu dizes bom dia, sorris, ele vira-te a cara. não como se não te conhecesse, reconhecendo-te e virando ostensivamente a cara, para que percebas, que agora ele não te falará mais. um dia isso acontece, talvez seja a primeira vez que percebas que a idade adulta não traz sempre maturidade. algumas vezes, também traz maldade.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

imitação

eu vou continuar o falso lento do costume, o falso distraído, o falso não-tou-nem-aí. vou continuar o mesmo tipo que pisca o olho, que sorri, que não pára de inventar. vou continuar o mesmo tipo que rima o impossível e desatina o mais provável. vou continuar a ser o abraço quente. vou continuar a ser a melhor imitação de mim mesmo. para sempre.

peça

tu vais continuar a ser a mesma moça de nariz empinado e vais deixar que os cabelos brancos te tornem ainda mais brilhante. vais ter frio nas noites de inverno e querer ficar parada na varanda, ao sol, quando chegar o calor. vais continuar respondona e feliz, assertiva e gulosa, decidida e doce. haverá, como sempre houve, pessoas que te conhecerão um pedacinho. e depois existirei eu, o tipo que sabe do teu lado diurno e nocturno. a peça que completa.

vinte anos

olha, daqui a vinte anos eu vou estar contigo, debaixo dos lençóis, muito quentinhos os dois, abraçados, e tu vais rir-te como uma catraia pequena e dizer outra vez, só tu para me fazeres rir assim, e eu vou apertar-te nos meus braços e sussurrar-te ao ouvido, sempre foi assim, amor, sempre foi assim.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

entre

entre a mão e a parede, a faca que corta as cabeças. a mulher que chora. o homem que ignora os meios de conhecer o mundo. a garrafa de álcool. o representante do povo. entre a mão e a parede, o lixo que escorre das bocas. o arranjo fotográfico. a sessão de cumprimentos. as crónicas anunciadas. entre a mão e a parede, trezentos quilómetros de estrada esburacada, um rádio mal sintonizado. uma viagem. um desejo. um apagão.

mão

a mão pousou sobre uma página velha que estava esquecida nas prateleiras. pousou ali e reacendeu-se. o papel fez-se corpo e o corpo agressor - já tentaste focar os olhos numa chama? - dedicando-me todas as suas forças. a mão pousou sobre algo que agora já não reconhece, e queima e prende e não deixa que a retire. a mão pousou. fim da história.

parede

a parede branca quase cega, fecho os olhos devagar. não há palavras que possam ainda ser acrescentadas a este eco. não há maneira de fazer sentir as coisas de uma forma diferente. a parede branca quase cega, repito isto, ainda não o interiorizei. os pés cansados de tanta escada, tanta escarpa. aquele momento em que todos falam, apenas por não haver já mais o que dizer.