quarta-feira, 29 de abril de 2009

ainda

o homem, já muito velho, guardava na caixa todo o seu dinheiro. um dia, uma mulher bateu à porta e atraiu-o para um descampado. aí, dois homens atacaram-no e prenderam-no de pés e mãos. soltou-se era já manhã. ao regressar a casa, apercebeu-se de que lhe haviam levado a caixa. o homem compreendeu que, mesmo sem caixa, as promessas são algo que se mantém. promessas de dias melhores, por exemplo. nem sempre acreditamos nelas. mas as promessas subsistem.

caixa

só passados alguns séculos o homem compreendeu que as promessas podem ser entregues vazias. uma caixa sem nada dentro. ainda assim, dão-lhe o mesmo nome, promessas. enfim, diz o homem para si mesmo, ainda me resta uma caixa.

crença

ao homem havia sido prometido mais sol. mais campo. mais tudo. ao homem havia sido prometido uma terra. um planeta. o homem acreditou.

terça-feira, 28 de abril de 2009

caras

o homem sem cabeça caminhava com uma cabeça nas mãos. nunca percebi bem se a cabeça seria dele ou não. quando o via passar na rua ficava escondido por detrás dos cortinados, para perceber se a cara da cabeça era a mesma dos dias anteriores. e sim, parecia igual. tenho para mim que as caras das cabeças arrancadas são todas iguais. talvez isso fosse o que mais me assustava. nunca saber quem tinha, agora, ficado também sem cabeça.

calar

era conhecido como o bisturi, entre os amigos. quase nunca abria a boca, mas duas palavras chegavam para arrumar com todas as questões que fossem colocadas. não era fácil ser o bisturi. tenho a certeza que a maior parte do tempo ficava calado só para não dizer nada de errado.

cabeça

se fosse capaz, comprava uma maquininha de me entrar na cabeça, e começava a cortar ligações, a arrumar a casa, a não permitir que o mobiliário interno deslizasse pelo soalho ao mais pequeno tremor de terra. se fosse capaz. felizmente, não sou.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

congresso

foi no congresso do desejo que me apercebi do inconfessável.

clube

não sei, ainda assim, o que é mais denunciador da intimidade: se uma fotografia de peitos descobertos num qualquer site, se a pertença, como associada, a um clube internacional de virgens.

fotografias

recebi o e-mail dela, sem surpresa. das saudades, lágrimas, silêncios e outras tristezas. de todos os males, eu o culpado. não esperava, no entanto, o resultado final. todas as fotografias tiradas naquele dia, no quarto dela, expostas num site pornográfico, por sua própria iniciativa. e agora só a imagino, de pintura borrada pelas lágrimas, a responder aos contactos dos fãs.

enquanto isso

vou deixando a minha opinião no blogtailors. hoje, não leia o título, leia o texto.
*
e por falar em 25 de abril, também deixei aqui isto, não vá de maduro o maio cair.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

insónia

por isso, feliz o escritor que não dorme: para ele nunca é tarde demais para se resgatar à espera.

liberdade

um homem viveu quarenta e oito anos sem conhecer a liberdade. nasceu e viveu sob uma ditadura, sem perceber que quando foi enterrado era já livre o seu país. muitos outros, mais novos e mais velhos, vivem anos e anos sem saber que estão enterrados. apenas o suspeitam, tal é a dificuldade de respirar.

freiheit
ein mensch lebte achtungvierzig jahre, ohne freiheit zu kennen. er wurde geboren und lebte unter einer diktatur und merkte nicht, dass, als er begraben wurde, sein land schon frei war. viele andere, jüngere und ältere, leben jahrelang ohne zu merken, dass sie begraben sind. sie glauben es nur, so schwer fällt das atmen.
(versão em alemão, traduzido por michael kegler)

escrever

passar o dia à espera de uma coisa que não vem e depois ser já tarde demais.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

sincronia

chego a passar noites inteiras sem dormir a pensar em frases que li num livro.
muitas vezes sinto-me inquieto, sem saber que livro ler a seguir, apesar de dezenas de livros por ler amontoados em cima da mesa.
talvez o leitor seja isto mesmo: alguém que olha o passado e o futuro ao mesmo tempo.

dúvida

agora, uma dúvida me assalta: para onde olha o leitor, para o passado ou para o futuro?

cidades

foram dispensados os operários na construção das cidades invisíveis. à nossa frente, apenas nevoeiro, o caos. só ao fim de certo tempo, olhando para trás, nos apercebemos do mapa construído na aleatoridade das nossas leituras. mas não o conseguimos explicar.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

código

não gosto de descrições: cansam-me. prefiro viver a violência do acontecimento escrito, mais que o ter explicado. não gosto de evidências: fazem-me desistir. quero encontrar na metáfora a verdadeira curva apertada que até o meu olhar se vê incapacitado de decifrar.

dor

querer ser bom e fazer de tudo para se ser bom é um objectivo difícil de alcançar. querer sempre o pior é muito mais fácil. mas as dores, ao contrário do que é costume ser aceite, nem só quem as sofre as sabe descrever.

homens

um homem desloca-se para a aldeia, em busca da história de um outro homem, séculos atrás esquecido, que tudo fez para ser bom. nessa viagem, conhece um outro homem que tudo faz para ser mau. o primeiro homem não resiste à tentação.

terça-feira, 21 de abril de 2009

o ruído que há no silêncio entre as palavras


colchão

deito-me com os olhos abertos: impossíveis de fechar. deito-me, à minha espera. o sono parece não querer vir, não querer dizer nada à minha vontade de dormir: impossível de chegar. tendo à repetição de gestos muito antigos, como todos os outros homens: porque haverá isso de me desgostar tanto? encaixo-me, apenas, na pequena fenda que se abre no meu colchão, onde acabaram todos aqueles que vieram antes de mim.

morto

volto a viver a sensação das sombras: penso: será uma consequência da primavera? dos dias de sol? todos os dias, ao fundo do meu corredor, alguém espera que eu saia de casa, olha-me de soslaio e desce, à minha frente, as escadas até à rua. volto à sensação das sombras: penso: poderão os mortos sentar-se à beira da nossa cama, esperar connosco pelo sono? todos os dias.

vida

para onde fogem os amantes mortos? para quê pensar no que acontece depois da morte. porque não pensas, já, no que acontecerá quando estivermos, finalmente, vivos?

segunda-feira, 20 de abril de 2009

novo

encontro é isso mesmo: desfazer juntando, fazer de novo.
é dessa novidade que quero.

dual

cabeça encontra cabeça, na hora de pensar, na hora de escolher, decidir. cabeça encontra cabeça, depois o olhar. olhar saboreia o olhar, entra dentro dele, quer mais. olhar saboreia olhar, depois o sorriso. sorriso abraça sorriso, desenha-se por fora, tem gosto por dentro. sorriso abraça sorriso, e depois desfaz-se. desfaz-se junto, um contra o outro. a fazer encontro.

texto

esta história tem livros, mas apenas no lugar de trás de um carro: andaste às voltas a pensar como começar o texto, fizeste quilómetros dentro da tua cabeça, e acabaste sentado sobre uma pedra, a olhar o mar, muito longe de casa, mas mesmo muito dentro de ti.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

quatro

queres sair de casa mas não encontras a porta.
queres respirar mas não encontras a janela.
percebes que o fumo voa mas não encontras o fumeiro.
percebes que te apagas mas não encontras o motivo.

paradoxos

não há bela sem zenão, dizia-se em eleia. no entanto, zenão era feio como uma égua visigoda. já a sua mulher... e assim se criavam paradoxos.

bate

eu sei. ele sabe que eu sei. ou tem quase a certeza. a mim não me importa. mas mesmo assim, o coração a acelerar.

leve

ao primeiro som do microfone, um susto. hoje aqui tudo de novo, tudo do bom e do melhor para a casa que se vai encher, o jardim com vista sobre a cidade, a mesma cidade de sempre, mas quase a parecer que pode ser, levemente, acariciada pelas nossas mãos.

funciona

e se queres saber porque é que eu, agora, já não quero ser uma estrela do roque-enrole, é porque experimentei a coisa e aqueles gajos só querem pôr o instrumento ainda mais alto, e gritar ainda mais gritado, e esperam que tu ensaies, que tu testes, que tu faças o teu show pornográfico ainda antes da hora marcada, e eu não funciono assim.

frase

"não te preocupes com isso", disse o médico, e eu estranhei porque utilizou uma proximidade que eu não tinha com ninguém, aliás, que eu não tinha com ninguém que eu não conhecesse. foi apenas por essa frase que eu fiquei a saber que a situação estava, agora, fora de controlo.

ali

ele estava sentado, com a caneta mal segura entre os dedos, numa das mesas do café que eu frenquentava desde pequeno. ele estava ali, não era seguramente ninguém, apenas um velho, apenas um velho que não conseguia segurar uma caneta. ele estava ali, até que um dia, muito tempo passado, ele deixou de estar ali. só então o encontrei num livro.

romance

quando eu finalmente entrar num dos teus romances, faz-me jogador do rio ave, põe-me a nascer no ceará, compra-me uma casa na lavra, faz de um dos meus filhos doutor, da minha mulher uma bela evangélica, da minha carreira algo em decadência, da minha vida uma espécie de desmoronamento, faz de mim um terramoto, mas não me faças vítima, não me faças pequeno, não me faças bem.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

camisa

enquanto espera, pensa na mulher que lhe vira as golas das camisas quando estão já coçadas, lembra-se do tempo em que as meninas chegavam até ele para lhe perguntar as horas, recorda um beijo que deu a uma desconhecida, uma ida ao cinema com alguém que só o queria de barbas compridas. enquanto espera, sem saber bem porquê, sente que toda a história daquele lugar está a acontecer ao mesmo tempo, não importa ter sido há dez, há sete, há quatro anos, foi ali, ali, onde ele espera de novo, passando a mão pela gola da camisa.

cachimbo

ao lado do acidente passa um advogado, na sua vespa, de cachimbo preso entre os dentes, vai absorto, e não contente, para o escritório ainda de madrugada. ao lado do acidente passa, sem ver, o rapaz que agora é velho, não fez a barba, acelera que está atrasado, entre os dentes, cachimbo, o fumo, o gume, duplo, de quem não está contente.

mãos de escritor

mãos (by jb)

trânsito

sinal vermelho, carros parados, ela puxa da lima e arranja as unhas, distraídamente, até que um carro muda de mão e choca contra o dela.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

miminhos

foi isso mesmo que eu disse: a realidade é tão dolorosa que prefiro chorar na ficção. ainda ontem me disseram que eu escrevo sempre a fingir que sou eu. tinham razão. têm. a realidade é tão dolorosa que eu finjo adormecer nos teus braços, acordar nos teus braços, dormir noites inteiras contigo ali ao lado, mesmo quando não estás. as lágrimas, guardo-as para a ficção.

realidade

comprei uma caneca de alumínio para aquecer a água no fogão. a água aquecida no fogão tem mais realidade. e, se não tens cuidado, queimas-te.

novo aqui

o bill calahan a perguntar pelo tamanho do texas, eu com a cabeça enterrada no quarto do baal, a levar palmadas na testa de uma médica qualquer, a noite inteira sobre os ombros, a àgua já quente no fogão.

terça-feira, 14 de abril de 2009

voar

um dia ele encheu bem o peito de ar, como se fosse soprar um mundo. ela disse-lhe: "despeja". e ele convidou-a para voar.

mais

desconheço o que fazes entre as quatro paredes da tua casa. tenho curiosidade, confesso. por isso é que passeio, todas as noites, na tua rua, a imaginar janelas abertas, o teu olhar, um aceno, um convite para eu subir. mas, por enquanto, desconheço. e temo que esse desconhecimento faça com que o meu coração seque um bocadinho mais.

secar

e ouvia o jacinto lucas pires dizer "quem não arrisca, seca corações", e ouvia mesmo, não lia, porque esta ele disse, no meio de uma canção, e ouvia aquilo e visualizava o coração a ficar pequeno pequenino, seco, quase a cair, como aquele pirata das caraíbas que arrancou o coração e o guardou numa caixa, mas neste caso, o coração não sobrevivia.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

acordar

acordas cedo, cedo, sempre muito cedo. é ainda de noite em todo o lado, dentro de casa. derrubas o livro que tinha ficado ao teu lado no colchão, respiras mal, queixas-te das costas. há um mundo inteiro adormecido à tua espera e tu sentes-te sem reacção. acordas cedo, cedo, sempre muito cedo, como se não acordasses nunca.

cintura

no teu sonho o pedro barbosa avançava pelo meio campo adversário sem temor dos rapazes que tentavam acertar-lhe nas canelas, conduzias o carro do teu avô para dentro da garagem que tinha crescido e permitia que fizesses manobras muito mais complicadas, havia um cão que tu não conhecias, mas ele sim, um cão com duas cabeças, uma de cada lado, e ao longo do sonho cada cabeça com duas pernas, a puxar para o seu lado, tu não compreendias, mas doía-te a cintura, lá isso doía.

convenções

nossa senhora de joelhos em frente à televisão, cumpres todas as convenções premeditadas para a data, pões as mãos nos bolsos, contas as moedas, a que horas ficaste de aparecer no café, nossa senhora da televisão, jesus cristo subindo ao céu, ao indo ao forno, as coisas são quase sempre mais ou menos as mesmas, cumpres todas todas as convenções.

olhar

cucos3

sábado, 11 de abril de 2009

porta

só podemos lutar contra o que conhecemos. por isso inventamos lutas contra os nossos vizinhos, os nossos irmãos, os nossos concorrentes directos. nunca ninguém ouviu dizer: estou em conflito com os de longe, que de maneira nenhuma podem chegar à minha porta. eu sei, tu julgas ter ouvido isso, em algum lado, alguma vez. mas não, tantas vezes a nossa porta está tão mais distante que a fronteira da casa.

alguns dias: a sexta-feira

são as nossas duas energias, no romance feito um e outro lado, tomando para cada exército um dos humores. ontem à tarde, dormia sob o efeito de comprimidos e, no meu sonho, caminhava por uma feira de horrores, onde certas coisas me estavam inacessíveis à vista. eu bem me esforçava, mas era incapaz de ver. quando acordei, percebi: cada momento censurado no sonho, eram os meus olhos a abrirem-se encostados à cobertura do sofá.

alguns dias: a páscoa

o texto de manoel carlos karam começa assim: resumindo: foi a guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas, ambos filhos da puta. repito as palavras, as intenções: perante certas frases, chego a sentir a necessidade de me benzer. a audiência sorri. eu sou todo tremor por dentro.

homem/ mulher

o maior poder é o poder das mulheres inteligentes. esqueçam tudo o resto, uma mulher inteligente consegue sempre o que quer. se és mulher e tens dúvidas do que te digo, não és uma delas. o maior poder é o poder das mulheres inteligentes. de alguma maneira, o rapaz que estava sentado na mesa do café, acabou por perceber que as coisas são mesmo assim. provavelmente, durante a sua vida, vai preferir sempre mulheres que tenham dúvidas. mulheres que estejam inseguras. mulheres que vejam nele um penedo de garantias. e ele nunca vai esquecer aquela vez em que a rapariga loura se levantou e saiu do café, enquanto ele, nervoso, mantia as mãos debaixo do tampo.

rituais

certos rituais cumprem-se sempre. desde que o homem é homem e a mulher mulher. ao fim de alguns minutos, ela achou que tinha esperado demais. sabem, essa coisa da maturidade das mulheres, o facto de lerem livros, sei lá. certos rituais cumprem-se sempre. e ela saiu.

para a tânia ganho

terra incógnita

na mesa do café, ele olhava, atrapalhado, para a rua. à sua frente, a rapariga loura, a brincar com os dedos sobre a mesa. as mãos dele debaixo do tampo, o seu sorriso inquieto, ansioso. ela esperava. ele não sabia por onde ir.


para o josé mário silva

quinta-feira, 9 de abril de 2009

atenção

é uma questão de centrar a atenção: vemos exactamente na direcção em que apontamos, mas perdemos noção do espaço em volta. acontece-nos vezes de mais. damos uma de duros, de capazes, de inteligentes, e tropeçamos nas coisas mais ínfimas, nas coisas que sempre soubemos que estariam lá, mas das quais acabamos por nos esquecer. é uma questão de centrar a atenção: uma questão de perceber os maus resultados que isso dá, a maior parte das vezes.

tropeçar

ainda há dias, parei numa passadeira, para deixar passar um pai com três miúdos pequenos. um deles, atravessou a estrada a apontar-me o dedo para a frente do carro, como se tivesse uma pistola. caminhou o tempo todo com os olhos em mim. tanto que não se apercebeu da proximidade do passeio, tropeçou e caiu.

domingo

esta cidade parece um domingo, quase não há pessoas na rua, apesar dos carros manterem ocupados os lugares de estacionamento. consigo ouvir os meus passos enquanto subo a ladeira, há um pai que passeia a sua criança do outro lado da rua, tudo parou. esta cidade.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

, pareceu-me ter havido aplausos, algumas gargalhadas, a vizinha do lado a lavar a loiça, um homem que entrou no prédio, tarde, um cão a ladrar do outro lado da rua

, pareceu-me ser ele, vinha com um amigo, esse já eu conhecia, tentei perceber pela voz se seria mesmo ele, mas não consegui deixar de ficar com uma ou outra dúvida

, afinal ele era aquilo, um gajo como tantos outros, quando os olhos nos deixavam ficar a nú perante aquilo que, segundo dizem, é mesmo a realidade.

calado

e ficou mesmo calado, o dia inteiro.

máscara

ao chegar, disse-lhe "bom dia", com um enorme sorriso. a empregada do café perguntou (ou afirmou?) "tu és escritor?". a máscara caiu-lhe e ele ficou calado.

terça-feira, 7 de abril de 2009

perfume

durante alguns dias, ainda havia o teu cheiro na casa, nas toalhas do banho, nos lençóis da cama. ainda havia o teu perfume disfarçado pelas divisões. eu passava as mãos pelos objectos à tua procura. durante alguns dias. agora já não.

diamante

gostava de ter outra forma de medir o tempo: que o tempo se medisse em páginas, que pudessemos virá-las quando queremos, passando-as depressa quando uma certa passagem não nos interessa, saboreando outra, demoradamente, voltar atrás, sempre que quiséssemos. gostava que o tempo fosse isso, qualquer coisa que se guarda nas mãos, como um diamante precioso.

bolsa

deixaste o teu coração guardado numa bolsa, em cima da mesa da sala. está lá, ninguém lhe tocou, à espera que voltes para o resgatar. está lá, é a olhá-lo que me entretenho o tempo todo que passo sem ti.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

mensagem

para futuros contactos, use preferencialmente o e-mail indicado no perfil. a mensagem era totalmente impessoal. mas ela não desistia de lhe telefonar, dia após dia. só para o poder mandar à merda e sentir-lhe a respiração indignada.

semana

lembrou-se que era semana santa. não que isso tivesse alguma influência, afinal ele não era religioso, nem nada que se parecesse. mas convidá-la para sair na semana santa, ainda para mais sabendo bem o que poderia acontecer, incomodava-o. aliás, só por a associar à semana santa, sentiu-se incapaz de a voltar a contactar.

comer

chegada a hora do almoço, ele fecha cuidadosamente a porta do escritório, conta os passos pela rua, sempre de olhos no chão, entra no restaurante, senta-se, sempre, no mesmo lugar, pede um dos pratos do dia, e come como se assistisse a uma cerimónia religiosa.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

dentro

dizem-te que podias querer mais, que poderias querer muito, que poderias querer tudo. tu sorris, metes as mãos aos bolsos. ainda podes tomar um café, beber um moscatel, ler o jornal, num balcão perto de tua casa. ainda podes estar à janela, a respirar o ar frio da noite. ainda podes não ser ninguém em todo o lado. o importante é saberes sempre com o que contar dentro de ti.

glória

num rádio velho, samuel úria grita por cima da guitarra eléctrica, onde é que está a tua glória merecida? faz parte do plano seres ignorado até um certo dia. nesse dia, e tu ainda não sabes, entras na estrada que te levará a querer ser ignorado, pelo menos, uma vez mais na vida. é como a ingenuidade, uma vez perdida...

plano

pode parecer-te estranho, mas existem homens com um plano. os primeiros anos, como as manhãs, cheios de nevoeiro. e depois a dissipação, lenta e instigadora de equívocos, até que um sol, ainda que tímido, demonstre finalmente a sua vontade de brilhar.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

amor

não escolhia hora ou lugar, sentia-se totalmente tomado pela vontade de se atirar de cabeça até ao centro do mundo que, no seu caso, era aquela mulher. como se o seu sangue, alimento de músculos e da própria vida, tivesse uma urgência de correr nas veias de quem ele amava.

desejo

de cada vez que precisava de se entender a si mesmo, apagava a luz, e deixava-se cair numa cama feita de livros e de algumas páginas arrancadas à força de desejo.

livro

o livro, de jean lartéguy, chama-se todo homem é uma guerra civil. e é isso que ele sente agora. o corpo alimentando-se do seu corpo. as ideias que nascem e crescem por dentro de outras ideias suas. a cabeça que não consegue adormecer. os olhos que não conseguem ver. as mãos que nada seguram. o livro ganhou à vida.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

ver

no final da conferência, o homem guardou todas as palavras que havia dito numa mala. tinham ficado espalhadas entre a mesa de conferecista e as cadeiras vazias da primeira fila. arregaçou as mangas e, com jeitos de empregada doméstica, pegou nas palavras aos molhos, varreu os pedaços mais pequenos para uma pá, e recolheu tudo numa mala. devia ser uma mala bem grande, pensa quem não lá estava. mas era uma mala mínima: as palavras cabem sempre onde mais nada sequer se vê.

sério

antes do início dos tempos era proíbido sorrir. depois de várias ginásticas bocais, foi permitido o sorriso, mas alistado aos pecados o riso solto. com sinceridade, ninguém podia rir, era sinal do demónio. a audiência escutava isto muito séria.

sorriso

então, ele estendeu-lhe a mão e disse: -transformaremos os cobardes em sensíveis, os loucos em líderes, os apagados em estrelas. e os poucos que restavam na audiência sorriram.