sábado, 31 de outubro de 2009
doces
adormeceu a pensar que ainda faltava comprar os rebuçados para o pão por deus. para que os miúdos que lhe tocassem à porta fossem felizes com doces. ainda pensou escrever-lhes poemas, mas o que valeria para um miúdo um poema? adormeceu a pensar nos rebuçados. sonhos doces passíveis de serem dados a toda a gente.
sexta-feira, 30 de outubro de 2009
setara
setara hussainzada é uma das concorrentes ao programa. vem da cidade de herat. mais do que ser uma das duas únicas mulheres selecionadas para a última fase do programa, setara é a única pessoa que está disposta, mais do que a ganhar o dinheiro, a transformar as mentes daqueles que acompanham o seu percurso. setara, para além de cantar, insiste em fazer tudo aquilo que a música lhe sugere. por exemplo, dançar. quando é eliminada, aproveita ainda a última canção a que tem direito para dançar e destapar os cabelos. ora, isto é considerado um atentado aos bons costumes. por esse gesto, como se verá no documentário de que falo, setara será tratada como uma "puta", uma "desavergonhada", alguém que deve "morrer". e não são só os mullahs que pensam assim. jovens entrevistados na rua, que nada devem ao look ocidental. mesmo alguns dos participantes do programa. enfim. o modelo pode transformar por fora, mas o mal que está dentro das pessoas, esse, ficará para muitos anos. como já se viu, aliás, em muitos outros países nossos conhecidos...
tesouro
o vencedor do afghan star recebe cinco mil dólares. o equivalente a dez salários anuais médios. vencer, mais do que dar direito a uma carreira, é algo equivalente à descoberta de um tesouro. e é sobretudo nisso que a maior parte dos concorrentes pensa.
estrela afegã
afghan star é um programa da tolo tv, um canal de televisão afegão que pretende revolucionar a vida musical afegã. numa sociedade onde, há bem pouco tempo, era proíbido todo o tipo de música ou manifestação artística, percorrer o país há procura de talentos musicais é mais do que uma aventura, o propiciar de um sonho a milhares de jovens (e menos jovens). tudo isto pode ser visto no documentário com o mesmo título. uma pessoa estranha a cópia de modelos tão gastos nos países onde a liberdade é tida por garantida. mas esse modelo num país como o afeganistão, é mais que uma novidade, é um terramoto social.
quinta-feira, 29 de outubro de 2009
livro ilustrado
esta manhã encontrei a escritora ana meireles a passear com a neta. quando lhe falei da biblioteca a cheirar a novo onde a vou levar na próxima semana, pareceu-me que o sorriso dela e o da neta, eram simplesmente um mesmo sorriso, enorme e colorido, como um livro ilustrado.
sonho
numa biblioteca podes sempre encontrar um desconhecido e levá-lo para casa contigo. fazer velhos amigos que se mantém fiéis a ti. descobrir, pelas marcações dos pedidos, quantos antes de ti leram aquele mesmo livro. numa biblioteca o sonho não tem como ficar preso. é um pássaro sempre pronto a voar.
biblioteca
uma nova biblioteca é um campo onde se plantam sonhos. pelo menos é o que sinto quando entro na biblioteca do cadaval, acabada de inaugurar. entro e penso em tudo o que é possível fazer dentro daquele espaço a cheirar a novo. quantos miúdos e miúdas vão andar por entre as prateleiras a descobrir livros, como eu já fiz, e continuo a fazer, sempre que entro numa biblioteca. uma biblioteca é um campo onde o homem cresce.
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
corpo
aguardo pelo outono como os outros o sol da primavera. deixo crescer as barbas, corto o cabelo. levo à varanda as mantas e os cachecóis. sorrio perante o som da chuva quando adormeço. aguardo pelo outono como os outros o sol da primavera. e a voz é um sussurro puxado de dentro do corpo em transformação.
poemas
do modo como nascem os poemas, não nascem as línguas. nem as marés, nem as ideias. a noite fecha-se sobre as cabeças, algumas velas acesas, os olhos atentos. do modo como nascem os poemas, não nascem os homens, as mulheres. há quem segure uma guitarra, quem beba do copo, quem mastigue, lentamente, o bolo de aniversário. do modo como nascem os poemas, não nasce a solidão. há sempre vozes dentro das cabeças, dentro dos corações. algumas mãos por segurar. um caminho por fazer. enfim, haverá sempre algo que escrever. do modo como nascem os poemas.
oito
oito da noite e na estação de comboios as pessoas estão espalhadas e inquietas. umas esperam o regresso a casa, outros o encontro marcado. olham os telemóveis, as linhas vazias, escutam, atentamente, as mensagens repetidas nos altifalantes. oito da noite e a rua fria, outono que chega, ameaça de chuva, nuvens no horizonte. pessoas sozinhas, à espera. oito da noite.
sexta-feira, 23 de outubro de 2009
últimas ceias (V)
querias que eu te dissesse para não ires embora, mas tu irias de qualquer maneira. eu não te disse nada.
últimas ceias (IV)
eu era a última praia do verão, levaste-me para o quarto, tiraste o vestido, fizeste amor comigo, falaste-me da tua vida. eu ouvi tudo, dei-te um beijo, foste embora.
últimas ceias (III)
eu amei-te durante o primeiro ano. tu amaste-me durante o segundo ano. fodemos como selvagens, em todo o lado. quiseste ser minha amiga, minha amante. eu quis que desaparecesses. nunca nos resolvemos mesmo. até ao dia em que já não éramos os mesmos e tu não percebeste.
últimas ceias (II)
fomos sempre melhores quando não fomos um do outro. quando me abriste as calças numa noite de chuva. quando bebemos vinho, nus, a ver um filme português. quando me sorris e me viras as costas, uma vez por ano.
últimas ceias (I)
este não é o primeiro poema que te escrevo ao som do wish you were here. há muitos anos atrás escrevi-te um, com uma caneca de cerveja na mão e a chorar baba e ranho, num bar que já não existe. é estranho estares aqui, se eu nunca sequer te beijei. mas é a minha forma de te dizer que estive errado. quis libertar-te da gaiola, fazer-te voar. tu é que não querias isso. já havia demasiada poesia na tua vida para te sentires segura ao meu lado.
quinta-feira, 22 de outubro de 2009
jogador de futebol e futurista (IV)
ele lia um livro enquanto ouvia o relato. ele gritava golo no meio de versos de poesia. ele comentava a teoria enquanto faziam um directo do marcolino de castro em santa maria da feira. ele não estava cá com merdas.
jogador de futebol e futurista (III)
por muito que procurem um homem romântico, o que algumas mulheres ainda não descobriram, foi o futebol.
jogador de futebol e futurista (II)
imaginas um livro por um pequeno resumo que leste. esse resumo inspira-te a) a comprar o livro via internet e b) começar a escrever algo no formato sugerido. entretanto o livro chega, percebes que não era nada disso, que talvez fosse algo disso, estás indeciso. adormeces e acordas a pensar no assunto. lembras-te de uma frase, de uma ideia, algo assim. no caminho para o trabalho, de autocarro, lês o livro. descobres uma frase, a frase. de repente encontras um sentido para tudo. alguns diriam, é a vida. tu sabes que, mais uma vez, é apenas literatura.
jogador de futebol e futurista (I)
se há uma coisa que justifica a existência de coisas como o S.L. Benfica é o gosto que uma grande parte das pessoas tem em ser enganada.
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
ídolo
podes ser o ídolo do teu vizinho, do teu primo, do teu namorado. podes ser o sonho da tua mãe, da tua irmã, da tua avó. podes ser o melhor da tua rua, do teu bairro, da tua aldeia, talvez. podes ganhar os prémios do município. podes ainda aparecer num jornal nacional, ter uma referência em blogues estrangeiros, seres entrevistado por ocasião de um evento social qualquer. se tiveres boa cara, apareces nas fotografias. mas não vales nada. um dia desapareces e ninguém se lembra de ti. o máximo que podes esperar é que a tua imagem perdida pelo youtube possa ser recuperada para que gozem contigo. para que gozem com o que tu quiseste ser e nunca conseguiste.
sonho
"toda a gente tem direito ao seu sonho, este é o sonho dela". mesmo que a menina se esganice toda para acertar uma nota que a sua voz não alcança. vem a família toda do estrangeiro, apoiar o sonho da menina. a menina sonha o impossível. pensa que o estrelato chega quando estamos deitados na cama a ouvir músicas sacadas da net ou a trocar figurinhas no hi5. ninguém, nem ela nem a família, põe a hipótese de investir o dinheiro gasto nas viagens na formação do eventual talento da menina. aposta-se na vida como se jogasse no euromilhões. e perde-se sempre.
crítica
não podes dizer que não gostas. já ninguém aceita que o faças. qualquer um, por mais imensamente medíocre que seja, não aceita que alguém o critique. que alguém diga que ele não presta. pois se "alguns amigos dizem que escrevo tão bem". se "alguns amigos dizem que canto tão bem". não podes dizer que não gostas.
terça-feira, 20 de outubro de 2009
teoria da vingança
depois perguntas-me: mas se partires não vais deixar que esse peso saia vencedor? eu apenas te digo que permitir a repetição do abuso encerra duas consequências: o afundamento no poço de merda onde estão pendurados os abusadores e uma reacção, por mais tardia, mais violenta.
não existir
muitas vezes pensamos que nos apetece ir existir para outro lado. normalmente, quando no lugar onde estamos um pesado pé nos vai quebrando os ossos um a um. tentam, à força, fazer de nós invertebrados. nós não deixamos. e partimos.
segunda-feira, 19 de outubro de 2009
convicções
porque a velha mania de que há uma consciência pública que se pode meter nas consciências privadas de cada um é, hoje, um conceito perfeitamente evitável. ao tentar apontar para aqueles que fazem um mau uso dos instrumentos de fé, saramago atira aos crentes. e isso é tão inaceitável que só pode ser visto como um sinal mais de senilidade.
sábado, 17 de outubro de 2009
pés de barro
corria atrás de bandidos como um super-herói, de certeza que algumas crianças tinham cartazes com a sua figura colados na parede, sonhavam ser como ele, um dia. quando se descobriu que era ele próprio que pagava a realização dos assassinatos, muitos pensaram que caía um mito de pés de barro. mas era apenas má teoria da literatura.
sexta-feira, 16 de outubro de 2009
cidade
a minha aldeia deserta tem prédios. prédios que cresceram em volta do mar. e no meio dos prédios há lojas que vendem jornais, cafés, uma cara conhecida que se cumprimenta. a minha aldeia é como uma cidade abandonada. eu podia ser feliz numa cidade abandonada.
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
o médico
só um médico saído dos livros de vila-matas pode falar assim. eram quatro e meia da manhã, ela entra de rompante pela sala de espera das urgências e diz em voz pausada, "familiares de rosa conceição". mais tarde, ao ser atendido por ele, pude perceber a minha desconfiança. analisou-me, apenas, com o olhar e com algumas perguntas. escreveu imenso no computador, enquanto eu estava deitado na marquesa, certamente um e-mail para algum hospital psiquiátrico em genéve. adivinhou (pois) uma lesão lombar só com o olhar e enganou-se no tratamento que me diagnosticou. passados menos de vinte minutos, entra na sala onde estou a tratamento e pergunta, a sorrir, se já estou curado. pois! (parte dois). deixa-me a sofrer dores intensas até de manhã, quando volta a entrar na sala e só faz um sorriso impotente perante a minha dor. pelo penteado dir-se-á que não terá dormido, apenas continuado a ler, ferozmente, cartas escritas por colegas do estrangeiro. tinha um sotaque estranho, poderia ser castelhano, poderia ser de outra qualquer origem. depois das nove da manhã desapareceu sem deixar rasto, e dos seus quinze doentes apenas deu nota à médica que o substituiu de três deles, aqueles que lhe pareceram as melhores para os personagens do romance que anda a escrever. dois homens estranhos, vestidos de preto, procuraram-no no hospital durante o turno seguinte, mas, por estranho que pareça, ali ninguém reconhecia, sequer, o nome dele.
urgências
durante nove horas numa sala de soro, onde vai entrando e saíndo gente num ritmo lento, durante a noite, e cada vez mais regular, assim que nasce o sol, aprendendo o que é a cidade onde se vive. pode saber-se muito de um lugar, mas não tudo enquanto não se passa umas boas horas nas urgências de um hospital. a carência dos mais velhos, o medo dos mais novos, o violento ar de habituação de quem lá passa muitas vezes, a capacidade de resposta dos enfermeiros (pau para toda a obra), a desorientação dos medicos, enfim, um outro lado da cidade, assim, descoberto, nas catacumbas de um hospital.
diagnósticos
por vezes, nos corredores dos hospitais, mortos e adormecidos são seres demasiado parecidos
terça-feira, 13 de outubro de 2009
segunda-feira, 12 de outubro de 2009
caos
a cidade organiza-se em torno das pessoas que lá vivem, talvez, mas todas as cidades parecem esquecer-se das pessoas que lá passam. basta um atraso de alguns minutos de um comboio, um comboio que traz muita gente que não vive mas passa pela cidade, e toda a zona envolvente da gare do oriente se transforma no caos. um caos momentâneo, mas um caos. dez minutos depois volta a ser domingo à noite na cidade.
dor
ganhas consciência do teu corpo quando o corpo te dói. quando uma dor aguda te puxa. tens que ficar quieto, durante alguns segundos, aguardando que a cólica acalme. isto dá-te um novo ritmo, uma nova sensação do que é a realidade. agora és tu e o teu corpo. e mesmo a imaginação só voa nos intervalos.
domingo
há um traço na cara das pessoas que passeiam aos domingos, em ruas que eu conheço. um traço que denuncia o cansaço, o trabalho intenso, a sobrevivência. a maior parte do mundo sobrevive e nem sequer passeia aos domingos. a proximidade desta realidade puxa-me à realidade. a de que nenhum projecto político se lembra de que, o mais importante, seria permitir que estas pessoas tivessem uma vida, não uma sobrevida.
domingo, 11 de outubro de 2009
anunciação
não se poderá falar, portanto, de alguma coisa com propriedade que esteja a nascer desse enunciar palavras. o corpo é frágil e a mente fértil de ideias. o corpo faz-se por parvo. e goza ou sofre, conforme as horas e os dias que passam. diria que somos humanos, terrivelmente humanos. mas pode ser que seja, apenas, literatura.
palavra
aquilo que tentas fazer é espremer as palavras até ao ponto em que elas perdem todas as ligações com a sua origem. um mundo feito exclusivamente de palavras. aquilo que tentas fazer é dar a tua existência ao sacrifício, de forma a radicalizares a experiência de tocar a palavra. e depois adormeces, de madrugada, extenuado e seco.
duas armas
não se percebe bem o que terá acontecido, até porque os testemunhos se contradizem. mas numa coisa parece haver acordo; os dois homens, o morto e o outro, já há alguns dias que andavam armados. candidatos armados em campanha eleitoral. o quadro do país é este. que fique assente.
apenas a arma
a eleição nem chegou, sequer, a começar. nos boletins, o sangue. na memória, nódoas que não se apagam.
o voto e uma arma
os membros da mesa ainda estavam a conferir os boletins de voto quando um dos candidatos entrou na secção de voto e disparou a matar.
sexta-feira, 9 de outubro de 2009
rainha
na fotografia está um anjo a segurar-lhe a cabeça adormecida (morta). um anjo que parece ser cuidadoso mas é um anjo vingador. que vinga o mal que lhe fizeram em vida e o ultraje depois da morte. ser coroada assim, cadáver, esqueleto, é retirar da mulher todo o prazer que lhe é devido. antes ser rainha na eternidade do que no mosteiro de alcobaça.
dicionário
às vezes a palavra foge do seu sentido, da sua intenção, transformando-se em bomba nas mãos de quem a recebe. deveria existir um dicionário que resolvesse estes casos.
quinta-feira, 8 de outubro de 2009
herta müller
eis chegada a hora de tomarmos o prémio nobel por aquilo que ele realmente é: o sublinhar do pormenor. a academia está mais interessada em dar a conhecer autores que são importantes em pequenas partes do planeta do que aqueles que ficarão na história da literatura pela sua importância e mediatização. imaginem só a trabalheira que os senhores da academia iriam ter se o critério fosse a qualidade...
sair
sempre que regresso ao el corte inglés de lisboa penso que aquele centro foi feito para uma pessoa se perder dentro. e a verdade é que ontem perdi-me mesmo. tenho o hábito (uma questão de segurança, diria eu) de fixar o lugar por onde entro no centro vindo do estacionamento, para que possa descer pelo mesmo lugar, e assim encontrar facilmente o meu carro (isto resulta). o problema é que dentro do el corte inglés, se subirmos por um elevador, corremos o risco de nunca mais o encontrar. foi o que aconteceu. e só ao fim de um quarto de hora às voltas e de ter subido a pé do piso zero ao piso três consegui encontrar o elevador que fica mesmo junto ao expositor de desporto. isto poderia ter outra leitura qualquer. mas não tem. uma pessoa perdida não tem vontade de comprar nada. só de sair dali o mais rápido possível. ouviram, senhores do el corte inglés??
línguas
fui duas vezes a apresentações de livros de richard zimmler. das duas vezes, zimmler realçou a importância de se ter mudado para portugal. entrar numa segunda língua, ter que a usar diariamente, para trabalho, na rua, fê-lo sair de si próprio para encontrar um segundo lugar onde ser ele mesmo. quem viaja entre línguas corre sempre o risco de se encontrar em ponto maior.
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
cavalos
acordou com uma ideia na cabeça. no entanto, durante o banho, o pequeno-almoço, a viagem até ao escritório, várias outras ideias se foram misturando à primeira, competindo com ela, desvirtuando-a da sua origem, aparentemente tão perfeita na forma. as ideias concorrem assim, como cavalos, numa corrida.
identidades
guardava numa pequena caixa, no seu quarto de sempre, uma quantidade incerta de papéis onde ele escrevera textos adolescentes e apaixonados. um poema inicial é também um poema? talvez tenhamos que nos precaver contra estas dúvidas que nos assaltam a cada dia. um poema publicado é um poema de luís filipe cristóvão. um poema num papel poderá muito bem ser, apenas, um poema do homem que queria ser luís filipe cristóvão.
identidades cavalgantes
começa na cabeça onde uma palavra se junta a outra palavra, formando a frase. podemos tentá-lo nos lábios, mas é a mão que conduz a caneta pelo papel, marcando a tinta o poema que acaba de nascer. e quando rasgas o papel, é o poema que estás a destruir.
terça-feira, 6 de outubro de 2009
calado
queria ser capaz de te dizer numa frase o livro da ana luísa amaral, o mosteiro de alcobaça e o abraço na cama, dizer num poema, talvez, todas as leituras, todas as conversas, todos os passeios a pé, ser capaz, enfim, de sintetizar aquilo que não cabe no resumo, apenas no viver, viver a cada minuto, saboreando-lhe as arestas, conquistando-lhe os pormenores. talvez seja nisto que eu penso quando estou calado.
sábado, 3 de outubro de 2009
se fosse um intervalo
é sempre assim com os livros. deixas-te levar pelos corredores até que um te prende a atenção. quase ninguém falou nisso, não houve avisos, fanfarra, nada. peguei-lhe com o cuidado de quem pega em algo que há muito conhece. mas que, ou talvez seja por isso mesmo, continua a merecer o prazer da descoberta. o livro chama-se se fosse um intervalo. da ana luísa amaral. e vai comigo.
lado
irrompem, primeiro, pelo aparato sonoro. depois, o aglomerado, as bandeiras. mais próximo, as caras conhecidas, os folhetos, alguns, flores. vale tudo, por agora, para conquistas, mais que as atenções, as decisões. e a manhã de sol que estava tão bonita, deste lado de cá das falsidades.
geografia do medo
"eu dantes não tinha medo de estar aqui com as portas abertas. agora nem janelas, nem nada. tenho que me despachar." isto na rua mais pacata da pacata cidade de torres vedras. isto a um sábado de manhã, onde qualquer passo ecoa por ruas inteiras, de tão calmas. o medo cresce e infiltra-se em todos os poros, em todas as ideias. já não se trata aqui de realidade. apenas de teoria.
sexta-feira, 2 de outubro de 2009
partir pedra
as coisas podiam ser simples como uma cantiga popular brasileira, de rima certa e ilusão passageira fixada na nossa cabeça. mas não. temos o peso da história, da memória e medo, muito medo, do futuro. temos os pés presos na terra descolorida dos nossos antepassados, o amor de mãe castra-nos, a língua prende-se entre os dentes que trazemos cerrados. as coisas podiam ser simples como uma manhã acordada na revolução do grito do ipiranga. mas caminhamos, de tornozelos presos nas correntes, a partir pedra, a partir pedra, a cada dia que passa.
refrão
"fiz esta canção só p'ra você", a lírica destemida, a poção mágica na ferida, "fiz esta canção só p'ra você", o nocturno espremido, o passo mal calculado, "fiz esta canção só p'ra você", a árvore não plantada, a morada desconhecida, "fiz esta canção só p'ra você, mas p'ra quê?, se você gosta só de mpb..."
nota: citação de música de zeca baleiro
nota: citação de música de zeca baleiro
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
dia
um dia plantarás uma rosa e atraído pelo cheiro apaixonar-te-ás por ela. no desejo do abraço cravará em tuas mãos os espinhos. nesse dia compreenderás as dores e os desgostos do amor, a traição, a mentira, o sangue. e a partir desse dia, amarás muito mais intensamente.
missão
entregam-te em mãos a missão, a transmitir em alguns dias, à pessoa certa, e tu caminhas pela noite errando as portas, espreitando as janelas, nas mãos a missão, mas na cabeça, a confusão e a dúvida, a incerteza de fazer o certo, a incerteza de acertares, nas mãos a missão, o corpo que se recusa a andar, a noite inteira, perdido pelos confins dos caminhos que desconheces.
amor
gostava de dizer o amor, os olhos claros, um vinil antigo da tori amos já um pouco riscado, a janela da sala aberta, os cabelos despenteados, os ares do mar e das árvores que nos tomam, gostava de dizer o amor, os olhos cerrados, o espírito tomado pelas palavras mal trocadas, os verbos mal conjugados da noite longa, longa e longe como os lábios que dizem o amor.
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