segunda-feira, 22 de novembro de 2010

foto de luís filipe cristóvão

a primeira verdade

sete anos a escrever diários anti-pessoais, uma maneira de simulares intimidade com uma série de gente que tu desconheces. até que chegas à idade em que só deves fazer o que te apetece.

agora não me apetece.

domingo, 21 de novembro de 2010

desaparecer

"vou por um caminho escondido, não vá ver alguém conhecido". rumino assim as palavras dos outros num sentido tão claro dentro da minha cabeça. apetece-me balouçar lentamente ao som da música. até que, de vez, eu possa desaparecer. até que, de vez, seja bom desaparecer.



citação de O Cão da Morte na música a madrugada da minha rua.

sábado, 20 de novembro de 2010

corrida

corre, corre, corre, entre as cadeiras, corre, corre, deixa as maneiras e descobre o sorriso nos meus olhos. corre, corre, anda, sopra entre os lençóis na cama, as palavras inventadas que te entram pelos ouvidos. (e depois - e depois - laços de dedos, bandeiras de pernas. e depois - e depois - solta os cabelos, beijos às dezenas...) corre, corre, corre, solta as mãos e o universo, inventa mais um excesso, até que adormecemos os dois.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

na mão

não, na mão, não, sei lá, então, a solidão está tantas vezes no discurso. não, não sei, dizer, melhor é ver, enquanto os outros nos revelam o percurso. agora há tanta gente que não sabe para onde vai. agora no intendente abrem lojas monges thai. não, na mão, não, para lá do não, ferrados dentes numa côdea já sem pão. não, não sei, dizer, melhor é ver, enquanto os outros agora nunca aqui estão. os rios que atravesso não têm para onde correr. mergulhadores experientes afundam-se até morrer. agora há tanta coisa que não consigo esquecer.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

endereço

se ao mais pequeno abraço, nasce em ti o embaraço, então deixa que o contacto seja apenas a memória. pois se é velha a nossa história, aconselha-se o recato, e arruma o embaraço numa distante vitória. se ao mais pequeno gesto, tu já vês um recomeço, então deixa que o endereço seja assim desconhecido. mais valia ter morrido, quem se preserva insensato, e arruma o recomeço num resumo mais sentido. e então deixa que o contacto seja apenas a memória, pois já sabes que o endereço é hoje desconhecido.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

corpo

o meu corpo encerrado, fecho os olhos e adormeço. para mim nada peço, só encontro retrocesso. o meu corpo encerrado, noite dentro, respirando. com isso, eu vou contando, pouco importa o resultado. o meu corpo encerrado, minha alma posta à parte. tomara que se alastre, tanta vida ao desencanto. em tão grande quebranto, só meu corpo é levado.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

desencontro

mais nenhum tempo, a boca cosida com a linha mais forte, o corpo abandonado - assim são os ciclos da desordem, as manhãs mais breves da história. mais nenhum tempo, certa a urgência de acabar ou começar algo outra vez, e todas as impossibilidades serem físicas ou metáforas que ficaram por dizer - eu que nunca sei a ordem certa da assistência. mais nenhum tempo, a mão no peito enfiada, os olhos muito abertos, dizer-te o quê, quando o que te quero dizer está dito com os actos, com os gestos distantes, com a boca imóvel - resumo abreviado de um certo desencontro.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

dedos

os meus dedos silenciosos não são máquinas, deslizam apenas pela pele mais macia, pelo olhar mais quente, pelo lugar mais doce. os meus dedos silenciosos como lábios, elevando-se entre os lençóis, padecendo de desejo e agitação. os meus dedos silenciosos são fantasia, quase nunca existentes de verdade. os meus dedos silenciosos, como uma eternidade guardada no bolso.

domingo, 14 de novembro de 2010

fica

e depois, se precisares de mim, ficas sabendo que não estou. não, não me mudei, apenas registo a temperatura das campainhas, alimento o olhar com outros ventos, choro lágrimas de crocodilo nocturno, qualquer exclamação como essas. e sim, depois, saberás também como me esqueci das pontuações, anotações, lamentações. cócegas no peito, diria eu, e tanta água ainda por beber. e depois, bem, depois, faz o que quiseres. se precisares, ficas sabendo que não estou.

sábado, 13 de novembro de 2010

fotografia no telemóvel

orçamenta-me as costas, já que agora é dia de crise, orçamenta-me as ideias, as tristezas, a beleza, orçamenta-me sim, com delicadeza.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

calendrop

a onze, às onze, no onze, do onze.
a doze, às doze, no doze, do doze.
a treze, às treze, no treze, do treze.
a catorze - stop!
a onze, às onze, no onze, do onze.
a doze, às doze, no doze, do doze.
a treze, às treze, no treze, do treze.
a catorze - hump! hip! stop!

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

diálogo

quem? ele - hum? - isso - não - sim - hein? - pois - ah!

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

bonito

coisas bonitas - uma faca apontada ao coração, a carne a rasgar-se e as entranhas revirando-se, o cheiro, antes do sabor, do vómito subindo pelo teu corpo, o coito interrompido, o jacto adiado, a faca a atingir o coração, borrado de merda por todos os poros, tão forte o choque em todo o corpo, tão forte a imagem que te esqueces, uma vez mais - coisas bonitas, pediam-te, coisas bonitas, pois.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

cem à hora

o carro a cem à hora e tu choras - eu digo-te o que é abusar, digo-te o que é sentires-te sempre do lado de fora das coisas, a permanente insatisfação, o saber que as coisas não tem lugar - e tu choras e gemes quaisquer palavras inconfessáveis - quero lá saber do estado da nação, do estado do tempo, do estádio de evolução de seres vivos como tu, agarrados ao moral e às boas obras - o carro a cem à hora, o carro a cem à hora - e chorar, sim, chorar, um rio de lágrimas a escorrer pela face.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

dor

o corpo todo dói e não há maneira de encontrares posição para adormecer - logo hoje, porra, logo hoje - uma série de asneiras e impropérios saltando da boca, como se não tivessem medo de andar a pé na auto-estrada, como se fosse possível tornarmo-nos imortais sempre que quiséssemos. o corpo todo dói, a cabeça toda explode - e a quantidade de razões para te sentires assim a repetirem-se, como sussurros, ao teu ouvido - até que seja de manhã, até que seja, finalmente, de manhã.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

convicções

talvez o melhor seja mesmo não construir dúvidas por perto das convicções. deixar que as coisas aconteçam como o previsto, decidir sempre em consonância com os parceiros, remeter à unidade do que fazes todos os processos da construção. talvez o melhor seja mesmo não colocar em perigo as convicções. porque há um plano (há), porque há um propósito (também), e as decisões devem seguir o plano, enquanto o plano for, por todos, considerado o melhor (quando se quiser mudar o plano, então sentam-se as pessoas à mesa e muda-se o plano). por isso mesmo, não construas dúvidas por perto das convicções. uma coisa bem feita será sempre uma coisa bem feita. às outras, gabando-lhes a sorte ou o engenho, verás sempre que o tempo terá sobre elas uma palavra a dizer. 

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

bolsos

remexe sempre os bolsos vazios, se sai à rua de casaco. remexe os bolsos, as mãos que não param, a boca como se falasse, contasse baixinho às coisas os pensamentos que não se concluem. remexe sempre os bolsos vazios, onde talvez um lenço, um recado, uma conta de supermercado. remexe os bolsos e os olhos tremem-lhe,  a rua alonga-se para lá da própria rua, qualquer travessa faz uma cidade. remexe os bolsos, sim. de nada valerá que lhe chamem a atenção.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

lutar

lutar contra a história, não, mas não deixar também que a história nos tome o tempo e o uso da folha onde se escreve. tudo terá o seu lugar e a repetição cansa-me. os olhos começam a fugir página abaixo, a fazer do texto uma escada que se desce a correr. lutar contra a história, não. a história já está contada e, se não me seguram para um segredo ainda por revelar, porque me demoro aqui? fecha-se o livro e apaga-se a luz. lutar, não.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

raízes

não, não vou ficar por aqui, as minhas raízes não são de uma terra que não as alimenta, e não ficarão à espera de definhar. não, não vou ficar por aqui, ainda que a brisa sopre lenta sobre os olhos, ainda que o conforto seja prometedor. dizia, para mim mesmo, como o conforto acaba sempre por nos magoar, quando o corpo se acomoda ao lugar onde se arruma, e o lugar onde se arruma envelhece e perde as qualidades que oferecia. as raízes, crescem ou não? eu não vou ficar por aqui.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

mortos

não repito o nome dos meus mortos - estão aqui à minha volta, sorridentes, acalentando-me os dias - pois não se chama alto quem está tão próximo de nós. não lhes repito o nome, seguro-lhes as mãos, acaricio-lhes os braços - eles estão sossegados, felizes, quietos. não repito o nome dos meus mortos, não os visito nos lugares da morte - porque seguem vivos, como sempre, com as palavras, os carinhos, os olhares preocupados. de nada a morte contaminou quem morreu, pois não morreram, por aqui seguem, comigo. comigo.